segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sentimento de culpa e religião

Achei este interessante texto e acho pertinente sua divulgação.

autor: Geraldino Alves Ferreira Netto

“ A função do Supereu é o ódio a Deus, por ter feito tão mal as coisas” J. Lacan1 O conceito de culpa, tal como vem sendo utilizado na religião e na psicanálise, não me parece dar conta da complexidade que ele carrega em seu bojo, se usado indiscriminadamente (e sem crime).


Assim como se conseguiu fazer uma distinção entre medo e fobia, baseada na realidade concreta ou não de um perigo, creio que o conceito de culpa cobre bastante bem uma situação fatual de um ato realizado, mas é inadequado para outras realidades nas quaisé utilizado. Que outro conceito poderia complementar a idéia de culpa?

Uma incursão pelos discursos da religião, da filosofia, da psicanálise e da antropologia cultural, quem sabe?, poderia nos incentivar a precisar melhor uma definição.

1. Na Bíblia - As primeiras cenas da epopeia humana apresentam uma cobrança de Deus às suas novas e mais sublimes criaturas: "parirás com dor", a conta de Eva, e "comerás o pão com o suor de teu rosto", o débito de Adão. Era o pagamento que deviam por terem conhecido o bem e o mal, por terem desejado. O casal acabava de receber gratuitamente, e sem ter pedido, o dom da vida. Mas, ao abrir os olhos para o conhecimento das coisas, já estavam culpados, com pesada dívida a pagar e tendo que cobrir suas "vergonhas".

A expulsão do Paraíso deixou-os perplexos, bem no estilo Kafka: "Que mal fizemos?" Este foi um pecado bem original! Ou não foi o próprio Deus que ordenou que se multiplicassem? A interdição divina fundou o recalque, e o recalcado retornou logo na primeira geração. O primeiro filho do mundo, Caim, por um processo de deslocamento, substituiu a perplexidade original por uma atuação. Ao matar seu próprio irmão, fabricou um motivo concreto para justificar sua culpa.

2. No cristianismo - A culpa original se transmitiu de geração em geração, carregando junto a perplexidade pelos séculos afora. Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, no norte da África, o mais célebre dos Padres da Igreja Latina, foi quem melhor aprofundou o problema do mal e da culpa na teologia católica. Inconformado por ter de crer "só porque era absurdo", Agostinho aceitou, sim, os dogmas, mas não sem, antes, fazer todas as tentativas, com sua arguta inteligência, para compreendê-los à luz da razão, tentando conciliar o platonismo e o dogma cristão. Acabou encontrando uma série de incoerências e impasses, que não hesitou em expor publicamente, com toda a honestidade. Assim, viveu inquieto atéà morte. Dentro de sua vasta produção, destacam-se especialmente dois livros: As Confissões e Sobre o Livre- Arbítrio. Apesar de sua mãe ter sido uma santa canonizada, Santa Mônica, que dedicou sua vida à conversão do filho, desde sua juventude devassa e durante meio século após sua conversão, Agostinho se viu às voltas com o problema do mal e seu correlato consequente, a culpa." Oh! feliz culpa, que nos proporcionou um tal e tão grande Redentor."2 Era-lhe intolerável pensar em algo contrário ao bem, num mundo criado por um ser inteiramente bom e onipotente.3 Entretanto, em sua experiência de vida, desde a infância, detectou o mal na própria pele, definindo-se nas Confissões, como "menino tão pequeno e tão grande pecador". Referia-se à inveja que sentem as crianças (ele, inclusive) vendo o irmão mais novo sendo amamentado no peito da mãe. Doutra feita, saiu com uns amiguinhos para roubar pera no pomar do vizinho. As peras nem eram das boas, mas eles fizeram isto só pelo prazer de roubar. Isto o levou a refletir sobre a inanidade do mal. Poderoso por um lado, trivial do outro, o mal é um nada. É um puro contraste para realçar o que é bom. Deus é bom, tudo o que fezé bom, não existe o mal. Mais adiante, aceitou a existência do mal como princípio independente, mas isto lhe colocava um problema: implicaria uma limitação de Deus. E como Deus não pode agir errado, e tudo o que fez é bom, neste caso, o que parece ser um mal, de fato é um bem em si mesmo. Por fim, desiste de localizar a causa do mal em Deus, e responsabiliza a criatura pela causação do mal, por um abuso da vontade. Tranquilizou-se assim, vendo que o mal não era limitação de Deus, era até prova de sua bondade, já que teria dado à criatura tanta liberdade que a tornasse capaz de se afastar d'Ele. O mal seria, então, de novo, somente a ausência do bem, um nada. Agostinho ainda não estava satisfeito. Após manter interlocução com os maniqueístas, passou a considerar o bem e o mal como duas massas opostas, ambas infinitas. A massa do mal não foi criada por Deus. No ponto de intersecção entre Deus e o mal, Deus é finito, embora seja infinito em todos os outros aspectos.



Celéstio provoca, então, Santo Agostinho, com a seguinte discussão: o pecado pode ser evitado, ou não pode ser evitado? Se não pode ser evitado, certamente não é culpável, a responsabilidade cairia em Deus. Ou pode ser evitado e a criatura é responsável por ele, podendo não pecar. Mas, assim, a pecaminosidade original não seria universal. Agostinho responde que o pecado original não é evitável, (exceção feita para a Virgem Maria), mas o pecado atual pode ser evitado. Se a natureza humana fosse perfeita, o pecado seria evitável sem ajuda, mas, como esta mesma natureza já está viciada pelo pecado original, o pecado só pode ser evitado com a ajuda da graça divina. Celéstio insiste na provocação, perguntando: o pecado é questão de vontade ou de necessidade? É natural ou acidental? E Agostinho vai se contorcendo.

Tenta ainda localizar a origem do mal fora da espécie humana, atribuindo-a ao demônio. Afirma que todos os anjos tinham a mesma natureza quando foram criados. A divisão entre anjos bons e maus foi consequência da maneira como usaram suas vontades. Os anjos maus diferem dos bons, não por natureza, mas por culpa, do mesmo modo que, nos seres humanos, a vontade racional é livre para escolher entre o bem e o mal. Teríamos que concluir que Satã é o criador do mal. Mas voltamos ao impasse inicial, porque Satã foi criado por Deus, que só faz o bem. Igualmente admitindo que o mal resulta da livre escolha humana, a responsabilidade por ele seria sempre creditada a Deus, que criou a vontade.

O raciocínio dos maniqueus é lógico e embaraçante. Partindo do princípio de que o mal é um fato inegável, então ficaria insustentável que Deus fosse, ao mesmo tempo, onipotente e perfeitamente bom:

" Ou é perfeitamente bom, mas incapaz de prevenir o mal, ou é onipotente e capaz de prevenir o mal, mas não quer fazê-lo, o que mostraria que não é perfeitamente bom". Agostinho apela, então, para as famosas "distinções" escolásticas, dizendo que há dois tipos de mal: o mal que o homem faz, e o mal que o homem sofre. Deus só é causa do segundo tipo de mal, diz ele, quando tem que aplicar os castigos merecidos. Quanto ao primeiro mal, também é preciso distinguir o ato em si, e a intenção que o acompanha. O adultério, por exemplo, não é mau em si, ainda que seja contra a lei, ou que ninguém aceite ser traído. O aspecto mau do adultério é a luxúria, o prazer, a libido, o desejo, o mau uso da vontade. A vontade sempre se inclina ao mal, embora por livre escolha. - Por que, então, Deus nos dotou de livre-arbítrio, se sabia que podemos abusar? - Agostinho responde: O livre-arbítrio é um bem. - Retruca seu interlocutor: mas se Deus fez a vontade já inclinada ao mal, então só ele é culpado por nossos pecados. "Como pode ser que não pequemos por necessidade, quando Deus sabe de antemão que pecaremos, e o que Deus prevê deverá ocorrer?" Ainda segundo Agostinho, o pecado de Adão acabou afetando toda a humanidade, na transmissão pelo corpo ou pela alma." Se alojamos o pecado original no corpo e dizemos que Adão foi mudado fisicamente, neste caso é fácil ver como o pecado deve passar de Adão para todos os homens, por descendência natural”.

Mas, se o pecado vem da vontade, então ele começa na alma. Assim,"é fácil ver como o pecado original pode se transmitir à alma, se todas as almas derivam da alma de Adão, assim como todos os corpos humanos derivam de seu corpo". Um dos discípulos de Agostinho, Santo Anselmo, ao explicar a transmissão do pecado original, dizia que "teria ocorrido alguma espécie de mudança genética quando o sistema de Adão foi envenenado pela maçã". Tal mudança teria degradado a espécie humana, tornando-a inferior aos animais em alguns aspectos:

" Uma prova forte do efeito devastador do pecado de Adão é que os bebês humanos são mais ignorantes do que os filhotes de animais, que podem achar o peito da mãe e andar logo que nascem".

E onde entra a morte nesta história? Agostinho explica que os homens morrem por causa do pecado. Se Adão não tivesse pecado, não teria morrido, e seu corpo teria sido transformado em corpo espiritual. Também não teria ficado velho. Seria possível evitar a culpa? Agostinho postula que "devemos lutar pelo resto de nossa vida com a vontade para o mal que permanece em nós depois do batismo... Não precisamos sentir-nos culpados enquanto a ela não cedermos".

3. Na tradição grega - A tradição religiosa grega não conhecia o conceito de livre-arbítrio. As ações dos homens eram movidas pelos deuses. Longe de reclamar da falta de liberdade, os homens se orgulhavam de serem instrumentos da divindade. O que não os impedia de se sentirem culpados. Este é o fundamento mesmo da Tragédia. Não se trata de um delito moral. O sofrimento é devido a um erro de julgamento (amartia).

É dipo programou toda a sua vida, suas ações e decisões, consultou os melhores advogados da época (o oráculo de Tirésias), com a finalidade de agir de forma correta e não correr o risco de cometer algum erro fatal. Mesmo assim e, talvez por isto mesmo, fracassou redondamente e caiu nas piores armadilhas. É impossível evitar a culpa. Seria melhor não ter nascido.

Isto lembra a famosa afirmação de Hélio Pellegrino: "a condição humana não tem cura".

A tragédia passa a ser, então, um acontecimento religioso, que leva o homem a venerar a divindade.4

Se, desde Aristóteles, a ética é estabelecida como a ciência da felicidade, é inevitável que se caia em erro de julgamento, já que o destino humano aponta para outra direção, que não é a de querer fazer o bem a todos. É na direção da falta (faute, manque) como privação, castração e culpa-pecado que caminha o destino humano.

Sendo assim, a ética da psicanálise anda de mãos dadas com a ética da tragédia, não podendo ser entendida como disciplina da felicidade.

4.Em Freud - O sentimento de culpa inconsciente se localiza no campo de desejo. Como Santo Agostinho, ele também sentiu na pele seus efeitos, quando, por exemplo, comenta o sonho em queé advertido de que deveria ter fechado os olhos de seu próprio pai. Seria esta sua única dívida com o pai?

No caso clínico do Homem dos Ratos é que o sentimento de culpa aparece de maneira escancarada. O trio: culpa (imaginária), dívida (simbólica) e morte (real) alimentam o sofrer da neurose obsessiva. O pai do paciente já se via às voltas com uma dívida impossível de pagar. Sabia a quem pagar, mas não sabia como fazê-lo. Seu filho, por sua vez, repete a mesma história, não conseguindo pagar os óculos que comprou, sabendo agora como pagar, mas sem saber a quem, e tomando o trem noutra direção.

Freud encontrou dificuldades para justificar a existência e o ímpeto da culpa nas pessoas. Pouco convencido com o crime inconsciente do Édipo, que deve ter sentido a mesma perplexidade de Adão e Eva, o mestre cria o mito do assassinato consciente do pai da horda primitiva, para ter um motivo concreto e palpável para a culpa, como no caso de Caim. Segundo o relato de Totem e Tabu, a fúria assassina da irmandade da horda primitiva contracenava com sentimentos amorosos relativos ao mesmo pai que queriam matar, que representava um obstáculo a seus anseios de poder e a seus desejos sexuais. Depois que se livraram dele, aplacaram seu ódio. Como acontecia na refeição totêmica, identificaram-se com ele e viram ressurgir a afeição por ele, recalcada havia tempo. Esta afeição vem sob a forma de remorso, de sentimento de culpa. Inclusive porque nenhum dos órfãos conseguiu realizar o desejo que motivou o crime, o de tomar o lugar do pai, porque os irmãos se transformaram num bando de rivais em relação às mulheres que queriam possuir, todas para cada um. Perceberam que isto levaria a uma luta fratricida. Para continuarem vivos, tiveram que fazer um acordo e aceitaram a lei da proibição do incesto, aprovada por unanimidade. Era a "obediência adiada", retrospectiva, ao pai morto.

Nesse mesmo texto, Freud considera que Cristo inaugurou um novo método alternativo de mitigar a culpa, pelo sacrifício da própria vida, livrando assim da culpa os irmãos. Mas não se livrou da ambivalência amor-ódio, porque pelo mesmo ato em que oferecia uma expiação ao Pai, realizava seus desejos contra ele, tornando-se Deus também, tomando o lugar do Pai. Também a hipótese do assassinato de Moisés reforça a mesma tese.

Segundo Freud, o homem primitivo não tinha as inibições neuróticas. Ele não fantasmava, simplesmente atuava.

Admitida a equivalência culpa-dívida, fica fácil articular a frase que Freud equivocadamente atribuía a Shakespeare: "Cada um deveà natureza uma morte".6

Conhecer o bem e o mal, ou simplesmente desejar, são uma promessa de prazer. A psicanálise demonstra a tendência das pessoas a se proibirem tais satisfações ou a se castigarem, como represália, caso aconteçam. É uma autopunição que expressa e antecipa a pulsão de morte.

5.Com Lacan - Em seu texto "L'agressivité en Psychanalyse"7, Lacan apresenta Santo Agostinho como um precursor da psicanálise, referindo-se ao episódio já descrito acima, e citando, em latim, a frase em que o religioso dizia: "

Vi com meus próprios olhos e conheci muito bem um garotinho mordido de ciúmes. Ele nem falava ainda e já contemplava, totalmente pálido e com um olhar envenenado, seu irmão de leite".

Lacan analisa esta citação com os seguintes comentários: "assim ele amarra, de modo definitivo, com a etapa infans (de antes da fala) da primeira idade, a situação da absorção espetacular8: ele contemplava; a reação emocional: totalmente pálido; e esta reativação das imagens da frustração primordial: com um olhar envenenado, que são as coordenadas psíquicas e somáticas da agressividade original".

Outra coincidência é o episódio também citado acima, em que Agostinho compara os filhotes de animais com a cria humana, que Lacan retoma, via Wallon, nos vários textos em que se refere ao estádio do espelho, comentando o conceito freudiano de" desamparo" e, inclusive, neste texto sobre a agressividade.

De passagem, e em outro contexto, é bom lembrar os elogios rasgados de Lacan a Agostinho9, quando diz: "Os linguistas levaram quinze séculos para redescobrir, como um sol que se levanta de novo, como uma aurora nascente, ideias que já estão expostas no texto de Santo Agostinho, que é um dos mais admiráveis que se possa ler".

Lacan se refere aí ao livro De Magistro (Sobre o Mestre), a cujo respeito alguns comentadores "acham que o profundo Doutor da Igreja se perde em coisas bem fúteis. Essas coisas fúteis não são nada além do que há de mais agudo no pensamento moderno sobre a linguagem".

Diferentemente de Agostinho, que ligava a culpa ao mal, Lacan a liga ao bem. Explica que os bons cristãos não podem mesmo viver tranquilos, porque estão sempre se empenhando em fazer o bem (dos outros), o que só pode produzir culpa e catástrofes interiores. Não procurar o próprio bem é, para Lacan, uma traição. Sabemos que alguém pode ser infiel a si mesmo, quando tenta ser fiel ao outro. E, à s vezes, para ser fiel a si, é preciso ser infiel ao outro.

Retomando o texto freudiano Totem e Tabu, Lacan cita Hesnard ao falar do "universo mórbido da falta", para, a seguir, afirmar a "atração da falta", esta falta obscura que clama pela punição. E acrescenta: "

Será a falta que a obra freudiana designa em seu início, o assassinato do pai, esse grande mito colocado por Freud na origem do desenvolvimento da cultura? Ou será a falta mais obscura e ainda mais original, cujo termo ele chega a colocar no final de sua obra, o instinto de morte, dado que o homem está ancorado no que tem de mais profundo em si mesmo, em sua terrível dialética?"10

Um aspecto positivo e curativo da culpa foi apresentado por Lacan, junto com o conceito de "paranoia de autopunição", num vislumbre criativo e inédito na literatura psicanalítica, quando comentava o caso "Aimée":

Trata-se de uma mulher de 38 anos, chamada Marguerite Pantaine, empregada numa empresa dos correios. Após a morte de seu primeiro filho no parto, Aimée acusa a irmã de lhe ter roubado o bebê. Posteriormente, estende a acusação a outras mulheres e, finalmente, acusa a comediante Huguette Duflos. Em frente ao Teatro Saint Georges, onde ia se apresentar certa noite, a famosa atriz foi abordada por Aimée, que saca de uma navalha e tenta assassiná-la, ferindo-a na mão. Aimée é presa e depois internada, recebendo ajuda terapêutica. Segundo Lacan: 1

" ... pelo mesmo golpe que a torna culpada perante a Lei, Aimée feriu a si mesma e, quando compreende isso, experimenta a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se desvanece. A natureza da cura demonstra, ao que nos parece, a natureza da doença". 11

Ceder ou não ceder. Entre a culpa religiosa e o sentimento de culpa inconsciente há um ponto de intersecção. Etimologicamente, pecar significa "dar um passo em falso", e pecado é "pé caído"12, donde as expressões "queda original" e "cair em pecado". Também o nome de É dipo implica "pé inchado", seus pés tendo sido amarrados para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de julgamento, em incesto. O pé inchado dificulta caminhar e faz mancar.

Mas há também um ponto de divergência extremo. Enquanto que, para Santo Agostinho e para o cristianismo, em geral, a culpa é consequência de ceder ao próprio desejo, no sentido de seguir o mesmo desejo, para a psicanálise, mais explicitamente para Lacan, "a ú nica coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo", isto é, não seguir o desejo.13

6. Hoje, culpa ou vergonha? - Em nossos dias, a questão da culpa desloca-se para o discurso da antropologia cultural, tornando-se, juntamente com a vergonha, a base da organização social ocidental e oriental. De acordo com Stuart Schneiderman 14, "a vergonha acontece quando você não faz alguma coisa que deveria fazer; a culpa acontece quando você faz alguma coisa que não deveria fazer".

Afirma este autor que a cultura ocidental funciona mais segundo o modelo da culpa, controlando o comportamento das pessoas por meio de leis e punindo as transgressões. A responsabilidade pelas ações é do indivíduo. Somente ele é punido. O grupo não se responsabiliza pelos seus desmandos. Em contrapartida, quem não transgredir a lei terá toda a liberdade de fazer o que bem entender. O efeito do comportamento pessoal sobre o grupo é minimizado.

Já a cultura oriental tem na vergonha seu ponto de referência. Promove a civilidade, a correção, a dignidade, a integridade e a honra. A coesão do grupo é mais importante do que a expressão individual, e o bom comportamento é encorajado, porque, do contrário, existe a ameaça de expulsão do grupo. O comportamento individual reflete bem ou mal na reputação do grupo.

Assim, os japoneses são conformistas, enquanto os americanos são individualistas e procuram vantagens pessoais à custa dos outros.

A cultura da vergonha educa pela persuasão, mostrando a maneira certa de fazer as coisas. Os líderes são um exemplo a ser seguido. Se o líder erra, segundo a cultura tradicional do Japão, será obrigado a se suicidar. O suicídio restaura o respeito para aqueles que foram desonrados pelo erro.

A cultura da culpa educa pelo medo das consequências de fazer a coisa errada. Isto se torna ainda mais evidente quando os líderes dão mau exemplo.

Ainda segundo Schneiderman, a psicanálise se organiza teoricamente em torno da culpa, enquanto as terapias cognitivas, baseadas na vergonha, se propõem a ensinar as pessoas a fazer as coisas certas, em vez de buscar as causas de um erro culposo.

Concluindo:

O desejo humano implica sempre a falta de alguma coisa. Por mais que se satisfaça, algo continuará faltando. Só não faltaria nada se fôssemos iguais a Deus. Logo, no fundo, nosso desejo é de completude total, é desejo narcísico de ser como Deus, o eterno desejo de Adão e Eva, de conhecer e dominar tudo, voltar ao Paraíso e reconquistar o objeto perdido para sempre, escamoteando a falta, a castração e a morte. Sem dúvida que, em algumas situações, como no assassinato de Abel, de Moisés e do pai da Horda, estamos fadados a admitir que ‘minha máxima é a culpa’.

Mas, em se tratando do suposto pecado original (que não cometemos), do desejo narcísico de ser igual a Deus (e não foi Ele mesmo que nos criou à sua imagem e semelhança?), do erro de julgamento edipiano, do inescapável desejo de amar ou odiar a mãe, o pai, os irmãos (ou não poderíamos fazê-lo?), de nosso compromisso com o instinto de morte (que não escolhemos), que culpa poderia haver aí? Nem teríamos que sentir vergonha.

Entretanto, sofremos de um eterno mal-estar. Não é nada que fizemos de mal ou de mais, é algo da ordem do menos, da falta, ausência, desamparo, impotência, desengano, transitoriedade, angústia, tédio, náusea, fraqueza, vazio, nostalgia, saudade do futuro, buraco, nada, perda, carência, exílio, imprevisibilidade, ressentimento, "ódio a Deus", indignação, injúria, sofrimento trágico e uma dor que, às vezes, pode ser mortal. Nada disto é sinônimo de culpa, nem, necessariamente, sua causa.

A culpa pode ter até mesmo um efeito curativo, funcionar como um " anticorpo psíquico", a nos proteger do vírus da castração e da morte, fazendo-nos crer que somos nós os seus autores, aceitando-as melhor assim, como se não fossem uma impostura do Outro.

Mas nosso azar mesmo é sermos seres falantes, aos quais o gozo, consequentemente, fica interditado. Por isso sofremos. E continuamos a procurar um significante para se compor com "culpa". Curiosamente, um certo Serenus Anticochus esteve perto de matar a charada, em seus "Aforismos medievais da Lapônia", quando afirmou: viver faz mal à saúde. 15

Citações

I) LACAN, J. "A Ética da Psicanálise". in O Seminário, Livro 7. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 369.

2) Liturgia Católica. Frase atribuída a Santo Agostinho.

3) Nota: os argumentos seguintes, sobre Santo Agostinho, são extraídos do livro: Agostinho sobre o Mal, de G.R. Evans, Editora Paulus.

4) DETHLEFSEN, T. Édipo, o Solucionador de Enigmas. São Paulo, Cultrix.

5) FREUD, S. "Totem e Tabu". in Edição Standard Brasileira, V. XIII. Rio de Janeiro, Imago. p. 171.

6) FREUD, S. "Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte". in: Edição Standard Brasileira, V. XIV. Rio de Janeiro, Imago. p. 327.

7) LACAN, J. Écrits. Paris, SeuiI. p. 114.

8) Embora nos Écrits apareça a palavra "espetacular", é possível supor um erro de impressão por "especular".

9) LACAN, J. "Os Escritos Técnicos de Freud". in O Seminário, Livro I. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. p. 282.

10) LACAN, J. "A Ética da Psicanálise". in O Seminário, Livro 7. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. p.

11. II) LACAN, J. De la Psychose Paranoiaque dans ses rapports avec la personnalité. Paris, Seuil. p. 253.

12) Dictionnaire Etymologique du Français. Paris, Robert.

13) LACAN, J. "A Ética da Psicanálise". in O Seminário, Livro 7. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. p. 382.

14) SCHNEIDERMAN, S. Saving Face. Nova York, Knopf, 1995.

15) Citado por Carlos Heitor Cony, no Jornal A Folha de S. Paulo, de 25 abr. 1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário