quinta-feira, 4 de abril de 2013

A NEGATIVA (1925) - Freud

A maneira pela qual nossos pacientes apresentam suas associações durante o trabalho de análise fornece-nos oportunidade para realizar algumas observações interessantes. ‘Agora o senhor vai pensar que quero dizer algo insultante, mas realmente não tenho essa intenção.’ Compreendemos que isso é um repúdio, por projeção, de uma idéia que acaba de ocorrer. Ou: ‘O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe’. Emendamos isso para: ‘Então, é a mãe dele.’ Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de escolher apenas o tema geral da associação. É como se o paciente tivesse dito: ‘É verdade que minha mãe veio à lembrança quando pensei nessa pessoa, porém não estou inclinado a permitir que essa associação entre em consideração.’
Existe um método muito conveniente, pelo qual podemos às vezes obter uma informação que desejamos sobre material reprimido inconsciente. ‘O que’, perguntamos, ‘o senhor consideraria a coisa mais provavelmente imaginável nessa situação? O que acha que estava mais afastado de sua mente nessa ocasião?’ Se o paciente cai na armadilha e diz o que ele pensa ser mais incrível, quase sempre faz a admissão correta. Defrontamo-nos amiúde com um nítido correspondente desse experimento em um neurótico obsessivo que já foi iniciado no significado de seus sintomas. ‘Arranjei uma nova idéia obsessiva,’ diz ele, ‘e ocorreu-me em seguida que ela poderia significar isso ou aquilo. Mas não; isso não pode ser verdade ou não teria ocorrido.’ O que ele está rejeitando em fundamentos colhidos de seu tratamento, é, naturalmente, o significado correto da idéia obsessiva.
Assim, o conteúdo de uma imagem ou idéia reprimida pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negado. A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito,já é uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido. Podemos ver como, aqui, a função intelectual está separada do processo afetivo. Com o auxílio da repressão apenas uma conseqüência do processo da repressão é desfeita, ou seja, o fato de o conteúdo ideativo daquilo que está reprimido não atingir a consciência. O resultado disso é uma espécie de aceitação intelectual do reprimido, ao passo que simultaneamente persiste o que é essencial à repressão. No decurso de um trabalho analítico produzimos com freqüência uma outra variante dessa situação, muito importante e um tanto estranha. Temos êxito em vencer também a negativa e ocasionar uma plena aceitação intelectual do reprimido, porém o processo repressivo em si próprio não é, com isso, ainda removido.


 
De vez que afirmar ou negar o conteúdo de pensamentos é tarefa da função do julgamento intelectual, o que estivemos dizendo nos levou à origem psicológica dessa função. Negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: ‘Isto é algo que eu preferia reprimir.’ Um juízo negativo é o substituto intelectual da repressão; ou seu ‘não’ é a marca distintiva da repressão, um certificado de origem — tal como, digamos, ‘Made in Germany’. Com o auxílio do símbolo da negativa, o pensar se liberta das restrições da repressão e se enriquece com material indispensável ao seu funcionamento correto.
A função do julgamento está relacionada, em geral, com duas espécies de decisões. Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo particular, e assevera ou discute que uma representação tenha uma existência na realidade. O atributo sobre o qual se deve decidir pode originalmente ter sido bom ou mau, útil ou prejudicial. Expresso na linguagem dos mais antigos impulsos instintuais — os orais —, o julgamento é: ‘Gostaria de comer isso’,ou ‘gostaria de cuspi-lo fora’, ou, colocado de modo mais geral, ‘gostaria de botar isso para dentro de mim e manter aquilo fora.’ Isso equivale a dizer: ‘Estará dentro de mim’ ou ‘estará fora de mim.’ Como demonstrei noutro lugar, o ego-prazer original deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto é mau. Aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos.
A outra espécie de decisão tomada pela função do julgamento — quanto à existência real de algo de que existe uma representação (teste de realidade) — é um interesse do ego-realidade definitivo, que se desenvolve a partir do ego-prazer inicial. Agora não se trata mais de uma questão de saber se aquilo que foi percebido (uma coisa) será ou não integrado ao ego, mas uma questão de saber se algo que está no ego como representação pode ser redescoberto também na percepção (realidade). Trata-se, como vemos, mais uma vez de uma questão de externo e interno. O que é irreal, meramente uma representação e subjetivo, é apenas interno; o que é real está também lá fora. Nesse estágio do desenvolvimento a consideração pelo princípio de prazer foi posta de lado. A experiência demonstrou ao indivíduo que não só é importante uma coisa (um objeto de satisfação para ele) possuir o atributo ‘bom’, assim merecendo ser integrada ao seu ego, mas também que ela esteja no mundo externo, de modo a que ele possa se apossar dela sempre que dela necessitar. A fim de entender esse passo à frente, temos de relembrar que todas as representações se originam de percepções e são repetições dessas. Assim, originalmente a mera existência de uma representação constituía uma garantia da realidade daquilo que era representado. A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objetivo externo ainda tenha de estar lá. Portanto, o objetivo primeiro e imediato do teste de realidade é não encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá. Outra capacidadedo poder de pensar oferece mais uma contribuição à diferenciação entre aquilo que é subjetivo e aquilo que é objetivo. A reprodução de uma percepção como representação nem sempre é fiel; pode ser modificada por omissões ou alterada pela fusão de vários elementos. Nesse caso, o teste de realidade tem de certificar-se de até onde vão tais deformações. Contudo é evidente que uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos.
Julgar é a ação intelectual que decide a escolha da ação motora que põe fim ao adiamento devido ao pensamento e conduz do pensar ao agir. Esse adiamento devido ao pensamento também foi debatido por mim noutra parte. Ele deve ser considerado como uma ação experimental, uma apalpação motora, com pequeno dispêndio de descarga. Consideremos onde o ego utilizou um tipo semelhante de apalpação anteriormente, em que lugar aprendeu ele a técnica que agora aplica em seus processos de pensamento. Ocorreu na extremidade sensorial do aparelho mental, em conexão com as percepções dos sentidos, pois, em nossa hipótese, a percepção não é um processo puramente passivo. O ego envia periodicamente pequenas quantidades de catexia para o sistema perceptual, mediante as quais classifica os estímulos externos e então, depois de cada um desses avanços experimentais, se recolhe novamente.
O estudo do julgamento nos permite, talvez pela primeira vez, uma compreensão interna (insight) da origem de uma função intelectual a partir da ação recíproca dos impulsos instintuais primários. Julgar é uma continuação, por toda a extensão das linhas da conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio de prazer. A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que supusemos existir. A afirmação — como um substituto da união — pertence a Eros; a negativa — o sucessor daexpulsão — pertence ao instinto de destruição. O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão de instintos efetuada através de uma retirada dos componentes libidinais. O desempenho da função de julgamento, contudo, não se tornou possível até que a criação do símbolo da negativa dotou o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências da repressão, e, com isso, da compulsão do princípio de prazer.
Essa visão da negativa ajusta muito bem ao fato de que, na análise, jamais descobrimos um ‘não’ no inconsciente e que o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula negativa. Não há prova mais contundente de que fomos bem-sucedidos em nosso esforço de revelar o inconsciente, do que o momento em que o paciente reage a ele com as palavras ‘Não pensei isso’ ou ‘Não pensei (sequer) nisso’.

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