segunda-feira, 4 de junho de 2012

PSICANÁLISE E LINGUAGEM (Ilka Franco Ferrari)

PSICANÁLISE E LINGUAGEM
Ilka Franco Ferrari
Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona,
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da PUC-Minas.

RESUMO
     Busca-se apresentar, por meio de alguns textos eleitos nas obras de Freud e Lacan,
a abordagem peculiar que esses autores fazem da linguagem, já que ambos consideram que a palavra se reveste de importância na direção do tratamento e leva a modificações do sintoma.
     Palavras-chave: linguagem, inconsciente, intersubjetividade, lingüisteria
     Na atualidade, até os leigos dão notícia de que a prática psicanalítica valoriza a palavra. Se, para muitos, no entanto, ainda resulta estranho que os "problemas" de uma pessoa possam ser modificados porque ela fala sobre eles, para Freud, já no século XIX e início do século XX, a idéia de cura esteve sempre associada à possibilidade de o inconsciente se apresentar pela linguagem.
     Em "Algumas lições elementares de psicanálise" (1940 [1938]/1975), ciente de que a criação da psicanálise o havia levado a caminhos diferentes daqueles até então percorridos no ambiente psi, Freud foi bastante crítico em relação à Psicologia da época que, segundo ele, durante muito tempo não ouvira as incessantes batidas em seus portões do conceito de inconsciente pedindo para entrar. Preocupado em fazer ciência a partir dessas descobertas, fez questão de marcar que a filosofia e a literatura daquela época quase sempre haviam manipulado o conceito de inconsciente de forma distraída, e que a ciência ainda não havia conseguido encontrar uso para o mesmo.
     Seguiu adiante com sua experiência clínica e, quanto mais a comunidade científica o marginalizava, mais ele se convencia de que o trabalho científico que desenvolvia era a "tradução de processos inconscientes em conscientes, assim preenchendo as lacunas da percepção consciente" (Freud, 1940 [1938]/1975: 321). Ao utilizar a expressão "tradução" para explicar o que ocorre no nível dos sistemas do aparelho psíquico, não resta dúvida de que já falava de linguagem e demarcava o poder das palavras na cura.
     Entre os autores pós-freudianos, Lacan se destaca naquilo que diz respeito à forma categórica com que apresenta os fundamentos que a psicanálise retira da linguagem, chegando a afirmar que a psicanálise só é possível porque o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
     No momento em que Lacan afirmava que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, a lingüística estrutural se destacava como o exponencial da linguagem e buscava mostrar as propriedades gerais de todas as estruturas possíveis, informa Milner (1991: 15). De acordo com esse autor, o fato de Lacan ter feito essa afirmação sobre o inconsciente o levou ao encontro da ciência lingüística, a mais capaz de desenvolver as propriedades das estruturas em geral, uma vez que objetivava compreender "o que é estar estruturado" e, também, porque dizia de uma estruturação típica, ou seja, a estruturação do inconsciente.
     Surgiram, assim, questões importantes e, entre elas, estava a pergunta: há uma estrutura particular do inconsciente que não seja a de uma linguagem qualquer? Isso fez com que os lacanianos, em seus programas de pesquisa, se dividissem entre os que estudavam as propriedades mínimas e gerais de toda estrutura, seja qual for, e os que investigavam as propriedades particulares que fariam com que o inconsciente fosse tal estrutura, e não outra.
     Milner (1991) afirma, ainda, que são três os fatores que fazem com que a lingüística, a ciência da linguagem, continue interessando à psicanálise, ainda que em 1956 esse interesse fosse maior: a constatação da existência de propriedades que fazem com que a linguagem não seja uma estrutura qualquer; as perguntas sobre tais propriedades; e a constatação de que o inconsciente não é qualquer estrutura.


CONSIDERAÇÕES SOBRE FREUD

     No texto "O interesse da psicanálise para as ciências não psicológicas" (1913/ 1975), ao abordar a relação entre filologia e psicanálise, Freud demarcou seu conceito de linguagem. Para ele, ela não deve ser entendida apenas como a expressão do pensamento por meio de palavras, mas deve incluir a linguagem dos gestos e todos os outros meios pelos quais a atividade mental pode ser expressa, como, por exemplo, a escrita.
   

  Nesse texto, Freud utiliza a experiência analítica de interpretar sonhos para esclarecer seu pensamento sobre a linguagem. Segundo ele, o psicanalista, ao fazer uma tradução da linguagem do sonho para a da vigília, se convence de que a linguagem onírica faz parte de um sistema arcaico de expressão, nos moldes do sentido antitético apresentado pelas mais antigas raízes das línguas históricas. Diante da constatação de que os meios de representação, nos sonhos, são predominantemente imagens visuais, e não palavras, Freud acreditou ser mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita, escrita pictórica, como os hieróglifos egípcios, nos quais alguns elementos não se destinam a ser interpretados ou lidos, mas têm intenção de servir de determinativos, isto é, de estabelecer o significado de algum outro elemento.
     Em sua obra, diversas vezes o valor da palavra é ressaltado e defendido com a veemência de quem tem a convicção de uma descoberta preciosa. Alguns de seus textos se tornaram referências obrigatórias sobre o tema. Sua "Conferência I" (1915-1916), início de outras pronunciadas aos sábados à noite na Faculdade de Medicina de Viena, é uma delas. "Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente", começa Freud, precisando as diferenças entre o tratamento psicanalítico e o médico. Já sentindo a forte dificuldade apresentada pelo mundo científico em aceitar que, além do intercâmbio de palavras entre paciente e analista, nada acontece em um tratamento psicanalítico, Freud não se intimidou e ali apresentou seu método de tratamento, esclarecendo que "O paciente fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, [...] reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente..." (Freud, 1915-1916: 29).
     O alerta público sobre a insensatez que a sociedade atribuía a esse novo método terapêutico é estendido ao mundo dos familiares dos pacientes, em geral, como dizia Freud, mal informados sobre de que as palavras são capazes. Se o psicanalista se dedica a ouvir palavras, segue Freud, é porque são mágicas, suscitam afetos, tornam as pessoas jubilosas ou as levam ao desespero, são meio de influência entre os homens... Conforme se constata, não é difícil imaginar alguns dos motivos que faziam com que houvesse aumento crescente do público que : comparecia a essas conferências.
     É ainda interessante observar que, já em suas conferências pronunciadas na Clark University, depois denominadas "Lições", Freud (1910/1975) marcava a diferença mencionada entre médicos e psicanalistas. Na "Primeira lição", ele mostra que os médicos de sua época viam os pacientes histéricos como transgressores das leis de sua ciência, uma vez que as particularidades dos fenômenos histéricos os deixavam em posição de leigos. Diante da impotência médica, restava aos pacientes a privação da simpatia e do interesse desses profissionais.
     Segundo seu editor (Strachey, 1969/ 1975), Freud, ao defender a análise praticada por não-médicos, produz um relato não-técnico da teoria e da prática, provavelmente o mais bem-sucedido, denominado "A questão da análise leiga" (1926/1975). Nele, como é bem conhecido, Freud cria a chamada "Pessoa Imparcial", com quem dialoga sobre a psicanálise, partindo da idéia de que ela assistiu às indagações, feitas por um psicanalista, sobre os sintomas neuróticos que alguém apresentava, e daí exclama: "Então agora saberemos o que o analista faz com o paciente a quem o médico foi incapaz de ajudar!" (p. 213). Dentro do cenário, Freud lhe responde que nada acontece entre eles, salvo que conversam, e observa que as feições da Pessoa Imparcial revelaram sinais inegáveis de relaxamento e alívio, ao ouvir o que ele acabava de falar. Mas, continua Freud, elas revelavam, também, certo desprezo, como se a Pessoa Imparcial estivesse pensando: "Nada mais que isto? Palavras, palavras, palavras, como diz o príncipe Hamlet" (p.213).
     Na verdade, desde a época da hipnose Freud já notava a importância da palavra do médico como efeito de sugestão na associação de idéias. Em Paris, para estudar com Charcot, escreveu à futura esposa que sentia o quanto estava mudando, e que aquilo que o afetava era Charcot, homem com toque de gênio, que abalava suas metas e opiniões. Comentou com ela que, algumas vezes, saía de suas aulas como se estivesse saindo de Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição, ainda que admitisse: "Mas ele me exaure; quando me afasto, não tenho vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens" (1893/1975: 20).
     No entanto, se a partir de Charcot Freud vê a histeria de uma nova forma, são Bernheim e seu grupo de Nancy que inspiram sua psicoterapia catártica, princípio de uma terapia pela palavra. Bernheim afirmava que os efeitos do hipnotismo podiam também ser obtidos com o paciente em estado de vigília, por meio de sugestão, e a lógica dessa dissolução da hipnose na sugestão, como afirma Roudinesco (1998), os conduziu ao que se chamaria de psicoterapia.
     Seguindo uma trajetória própria, Freud não tardou em verificar que, ao limpar a mente por meio das fantasias relatadas, era possível obter algo mais que um afastamento passageiro das repetidas perturbações psíquicas. O sintoma também desaparecia quando a paciente recordava e exteriorizava o afeto relativo à ocasião e ao motivo do aparecimento desse sintoma pela primeira vez. Concluiu, nessa época, que traduzir em palavras o trauma mais o afeto que lhe correspondia levava à supressão dos sintomas.
     Seus diferentes modos de desenvolver o aparelho psíquico mostram, porém, que algo escapava à transposição em palavras. Ao estabelecer os processos primário e secundário, por exemplo, ele já dizia de dois idiomas distintos, ou seja, signo-coisa para um e associação de palavras para o outro. Deparou-se, também, com o fato de que o inconsciente fala mais de um dialeto, ou seja, para cada forma diversa de neurose, um linguajar.
     No entanto, ainda que observasse que cada neurose tinha sua forma de expressão, Freud manteve uma maneira de pensar a linguagem sustentada na construção de que o inconsciente é um sistema que só sabe desejar. Isso porque, para ele, no inconsciente há a inscrição deixada pela chamada "experiência de satisfação". O inconsciente deseja o reencontro com a satisfação originária e, assim, em seu inconsciente, o sujeito sempre diz o mesmo, ou seja, a fórmula de sua satisfação. Desse modo, existe algo da ordem do impossível, que o inconsciente tenta dialetizar em suas produções.
     De acordo com isso, Tizio (1991: 24) afirma que "a gramática é, para Freud as leis de declinação, ou seja, as derivações possíveis do objeto perdido". Analisar as declinações é fazer o caminho que pode chegar à formulação, supostamente primeira, que originou o produto expresso na fala. Daí, diz Tizio (1991), é que podemos compreender a ênfase de Lacan em afirmar que os sonhos se traduzem . como uma tarefa de latim.
     Observar que Freud atribuiu poder de cura à palavra é, de acordo com u que se vem desenvolvendo neste texto, reafirmar que ele o fez de modo diferente do utilizado até então. Outras práticas já consideravam a palavra como possível efeito, no real e, entre elas, podem ser citadas a medicina pré-científica, os rituais de magia, o ato da confissão religiosa, a técnica de sugestão... Em "Análise leiga" (1926/1975), no entanto, encontra-se um Freud empenhado em diferenciar a psicanálise da magia. Em determinado momento, responde à Pessoa Imparcial que a psicanálise não é uma mágica porque seus efeitos não são rápidos, e o atributo essencial da magia, diz ele, é a rapidez do sucesso. Ali ele também a diferencia do princípio da confissão que a Igreja Católica pratica, ou seja, ao confessar, o pecador conta o que sabe, enquanto, na análise, o neurótico tem mais a dizer, porque, ao falar, articula um saber não-sabido.
     Assim, demonstrando grande avanço na forma de pensar, Freud ensina que nem tudo pode ser dito e que a cura deve se nortear, principalmente, pelo que não se pode dizer Coloca, de forma clara, o limite do poder da palavra, já que nela há a vertente da inércia, da mudez, e o problema se centra, então, naquilo que emerge do silêncio.
     Existem, dessa forma, como escreve Tizio (1991), duas vertentes da linguagem em Freud e ambas evidenciando a dificuldade da psicanálise com seu objeto: a) a que remete ás associações do paciente em uma cadeia significante, chamada "os usos lingüísticos", e que possui possibilidades de deciframento, de declinação, sendo, conseqüentemente, da ordem do particular; b) a muda, em que as associações se detêm e a declinação é impossível; possuí características de escrita comparadas aos hieróglifos, aquela da "linguagem fundamental", assim chamada em referência a Schreber, e que diz do desejo indestrutível, das marcas de uma satisfação que persiste coerente.


LACAN: O TEMPO DA INTERLOCUÇÃO E DA INTERSUBJETIVIDADE

     No texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1958/1998), Lacan escreve que um primeiro estudo da paranóia, realizado por ele trinta anos antes, acabou por levá-lo ao limiar da psicanálise. Tratava-se, como se pode concluir, de sua tese de doutorado, quando já demarcava a existência de um tipo especial de sintaxe na loucura, uma produção criativa na psicose, passível de compreensão, porque não se reduzia propriamente à loucura e, sim, às leis de sentido.
     A leitura "De nossos antecedentes" (1966), texto publicado em Escritos, favorece o entendimento do ingresso de Lacan no universo da psicanálise freudiana. Nele, Lacan escreve que sua entrada na psicanálise se deu em função de sua fidelidade ao invólucro formal do sintoma, verdadeiro traço clínico pelo qual tomava gosto, já que tal invólucro podia ser revertido em efeitos de criação, bem observados em Aimée. Essa paciente psicótica, que conjugava um espaço poético com uma escansão abissal, conforme afirma Lacan, mostrava que, na psicose, havia um efeito positivo, um estilo sujeito às leis de sentido e, portanto, compreensível. Para ele, tal observação só foi possível porque, ao transpor as portas da psicanálise, logo reconheceu nessa prática preconceitos de saber muito mais interessantes, por serem aqueles que devem ser reduzidos à escuta.
     Essa idéia de uma "compreensão" possível é correlata á noção de intersubjetividade e pode ser observada em "Para-além do princípio de realidade" (1936/1998), texto em que Lacan comenta que Freud, determinado por sua preocupação em curar, reconheceu que a maioria dos fenômenos psíquicos do homem relacionava-se, aparentemente, com uma função de relação social. Diante de tal constatação, diferente de outros médicos de sua época, Freud não excluiu a via que, por si mesma, abria o acesso mais comum a esses fenômenos, ou seja, o testemunho do próprio sujeito. A linguagem, enquanto signo, é, assim, o dado da experiência analítica, mas o psicanalista, "exatamente por não desvincular a experiência da linguagem da situação que ela implica, a do interlocutor" (Lacan, 1936/ 1998: 86), mostra que a linguagem, antes de significar alguma coisa, significa ara alguém. O homem - expressão utilizada por Lacan - que fala dirige-se ao psicanalista e este, ao estar presente e escutar considera que "o que ele diz ‘pode não ter nenhum sentido', mas o que ele lhe diz contém sentido" (1936/1998: 86).
     Assim, produz-se um sujeito porque existe um Outro da compreensão, aquele que decide seu valor humano, seu sentido. É evidente que essa situação da intersubjetividade, baseada na interlocução, se centra na tópica imaginária, no outro imaginário. Nela, a palavra remete à relação com o outro e não à cadeia significante, ou seja, o sujeito que surge é o do sentido, aquele que precisa de um outro da intencionalidade para existir. Este não é, ainda, o sujeito do significante desenvolvido por Lacan.


A PACIFICAÇÃO PELA PALAVRA

     O desenvolvimento das idéias mencionadas leva Lacan a se interessar pela questão da agressividade presente na relação especular. Isso o faz escrever "A agressividade na psicanálise" (1948/1998) e o leva, também, a desenvolver idéias em que se observa que falar é renunciar à agressividade. A palavra é pacificadora, pacifica a luta travada pelo reconhecimento. Surge, assim, a valorização dada ao simbólico e, a partir daí, Lacan formulará que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mesmo que essa formulação seja, inicialmente, mais filosófica do que baseada nas leis lingüísticas. No princípio, ele recorre à noção de estrutura de linguagem formulada por Saussure e Jakobson, mas também utiliza a noção de estrutura da palavra existente em Kojève, a partir de Hegel, para fazer tal afirmação.
     Hegel e Kojève (Miller, 1994) pensavam que a estrutura da palavra se fundamentava no princípio da mediação, ou seja, que não há simetria entre o locutor e o que escuta. Aquele que ouve está em posição de mestre, já que decide o sentido do que pode ter sido dito. A palavra, ainda que mediadora, é então dessimétrica, o que é bem diferente do que pensava Saussure. Surge, então, o Outro, não como o Outro da linguagem, mas, sim, como garantidor, testemunha. Surge a concepção da palavra verdadeira, palavra pela qual o sujeito só se designa por meio de alusão, já que supõe o Outro que escuta e decide o sentido, palavra que deve ser liberada para favorecer a cura pela simbolização. Existindo a assimetria, vale lembrar que o analista pode introduzir nova pontuação, ao ouvir o que o paciente fala, na tentativa de ratificar sua subjetividade.
     Como diz Tizio (1991), por meio dos "usos lingüísticos", já formulados por Freud, Lacan elabora uma concepção de simbolização totalizadora e, conseqüentemente, de pacificação do imaginário, já que tudo poderia ser reabsorvido pelo simbólico. Vê-se que, num momento em que se dizia claramente freudiano, Lacan acaba por contrariar a idéia de um mal-estar que é próprio da civilização, muito discutido por Freud. Só mais tarde ele notará que não se tratava de uma palavra prisioneira a ser liberada, mas, sim, de "uma satisfação retida que não passava pela palavra", continua esta autora (p. 28).
     O que acontece é que, depois de afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, influenciado pelos autores já citados, Lacan se esforçou para unir as estruturas da linguagem e da palavra, que então se faziam presentes em sua construção teórica. Conforme afirma Miller (1994: 100), o que se conhece como gráfico do desejo "é a redução, em uma só, desta dupla estrutura [...]". Nele se pode observar que a estrutura da linguagem obriga que se isole o conjunto dos significantes, o qual deve ser situado no lugar do Outro, na estrutura da palavra; neste gráfico nota-se, ainda, que a dessimetria implica que o Outro decida o sentido do que se diz, mas, exatamente por ser o destinatário da mensagem, é ainda o lugar do código que permite decifrar o que é dito. Une, enlaçando um termo próprio da estrutura da linguagem, o conjunto de significantes e um termo próprio da estrutura da palavra, o sujeito.
     Dessa união, por si só incompreensível e criticada pelos estruturalistas, a exemplo de Lévi-Strauss, surge o sujeito barrado, efeito da cadeia significante, e, por isso, no gráfico, Lacan lhe dá o mesmo lugar do significado.
Acontece que, para Lacan, a estrutura, diferentemente do modo de pensar dos estruturalistas, não é uma construção, como bem se pode ler em Miller (1994). Ao considerar a estrutura como a própria linguagem, ele raciocina que, se a linguagem preexiste ao sujeito, ela é causa e, como tal, tem efeitos, a exemplo do efeito de sujeito. Sujeito que não é transportado pela cadeia significante, mas, si inserido nessa cadeia e que paga um preço por isso, que é a perda do ser.
     Ao observar que a estrutura da linguagem tinha, além de efeito, um produto, algo que se perde, algo que permanece em seu exterior, Lacan nomeia tal produto de "objeto a". Para dar conta de tal articulação, coloca o "objeto a" naquilo que chamou de estrutura do discurso, estrutura esta responsável por realizar a recuperação daquilo que ficou exterior à estrutura da linguagem e, assim, transformar a perda em produção.
     Se a linguagem preexiste, a simbolização necessita de um começo. Dessa forma, Lacan desenvolve a noção de que o começo deve ser uma metáfora fundamental, já que, segundo Freud, a linguagem é a perda da coisa. Surge o "Nome do Pai", metáfora fundamental que metaforiza nada mais nada menos que Das Ding, a coisa freudiana, promovendo a construção das estruturas clínicas. Se antes o pai do Édipo freudiano diz da função simbólica sujeita ao reconhecimento, agora o pai freudiano é um significante fundamental, aquele que permite a simbolização. Se a linguagem era um campo ordenado pela palavra e se tratava do reconhecimento de um sentido, agora, passando pelas leis da linguagem, Lacan introduz a dimensão do sem sentido.
     Essa dimensão do sem sentido só pode surgir, como se nota, no momento em que Lacan se deparou com o esforço de unir a estrutura da linguagem e a da palavra. Isso o leva à organização sincrônica dos significantes, bem como à diacronia dos mesmos, ou seja, à sucessão dos significantes em uma estrutura de remissão. A ordem simbólica é, assim, apreendida como conjunto diacrítico de elementos discretos, o que significa que os elementos adquirem valor é na relação com os outros, em uma estrutura combinatória. A partir daí, é do sem sentido do significante e se produz a significação.
     Nessa ordem diacrítica, oposicional, da cadeia significante, obrigatoriamente é levado a considerar a existência de pelo menos um significante que não forma parte do conjunto de significantes, o que resultava bem diferente das propostas do estruturalismo da época de Lacan. A exigência estruturalista de então supunha que onde tudo é significante necessariamente haverá um conjunto que os comporte, ou seja, cada significante faria parte desse conjunto, o que não comporta algum que permaneça excluído.
     Conforme se observa, Lacan alterou a hipótese estruturalista, foi muito criticado por isso, mas encontrou um matema para escrever o que propunha: S(A), significante de uma falta no Outro.
     Esses avanços trouxeram modificações na clínica e, como escreve Tizio (1991: 30), agora já "não se tratava de dar sentido, de dar explicações, de compreender, enfim, de que o analista transmitisse seu saber, mas, sim, de esgotar a significação subjetiva". O sujeito, como já escrito, é definido como efeito de estrutura. O tempo passa a ser lógico e de efeito retroativo, ou seja, tempo de ver, compreender e concluir, na ênfase de que é a partir do presente que se faz relato histórico, assim como se faz o futuro. A realidade fantasística aparece no relato do paciente, via enunciação, e diz de um resto que permanece fora da referência lingüística, assegurando que nem toda satisfação foi apagada para o sujeito.


A LINGÜISTERIA

     É surpreendente, conforme nos diz Miller (2003), o quanto Lacan, no começo de seu ensino, confiava no estruturalismo jakobsoniano modificado por Lévi-Strauss. Naquela época, ao tentar conciliar a psicanálise com o discurso da ciência, Lacan "considerava que a lingüística estrutural era a ciência piloto das ciências do homem, eminentemente válida para a psicanálise" (Miller, 2003: 21). Chega, no entanto, o momento em que Lacan abandona a ênfase estrutural, o que é resultado de sua teorização sobre o real e o gozo.

     Um dia percebi que era difícil não entrar na lingüística a partir do momento em que o inconsciente estava descoberto [...] mas se considerarmos tudo que, pela linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito [...] então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavr5~ Chamarei a isto lingüisteria (Lacan, 1981: 25).

     Se "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (Lacan, 1957/1998) é um texto que retoma, de forma mais clara, a questão da linguagem e da palavra, Mais, ainda (Lacan, 1975/1985) é um seminário de referência sobre sua ruptura com a lingüística estrutural e, nele, Lacan leva muito a sério a discussão do conceito de linguagem e da palavra como comunicação.
     De acordo com Miller (2003), em Mais, ainda Lacan se refere ao conceito di~ linguagem como derivado daquilo que ele chamou de alíngua, ou seja, "a palavra antes de seu ordenamento gramatical e lexicográfico" (Lacan, 1975: 257), e, ali, a palavra é concebida como gozo e não mais como comunicação. Assim, a linguagem e sua estrutura, "até então tratadas como um dado primário, apareceram como secundárias e derivadas" (id.: 258).
     Logo no início desse seminário, Lacan faz questão de afirmar: "Meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da lingüística" (1975/1985: 25). Segundo ele, tal afirmação era uma porta aberta para o que se poderia ver comentado em L’étourdit, ou seja, o que se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve. Desenvolvendo suas idéias, afirma mais adiante: "O que eu adiantava, ao escrever alíngua numa só palavra, era mesmo aquilo pelo que eu me distingo do estruturalismo, na medida em que ele integraria a linguagem à semiologia - e essa me parece uma das numerosas luzes que projetou Jean-Claude Milner" (p. 137)
     O caminho que Lacan elege em Mais, ainda para ir demarcando a distância existente entre a lingüística e a lingüisteria supõe uma passagem pelas vias do amor como signo, signo que aponta para a troca de razão, a troca de discurso. Discurso como laço social, fundado sobre a linguagem, na particularidade do uso do significante, que, como tal, não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como laço entre aqueles que falam. Nota-se, então, que nesse seminário, como bem demarca Miller (2003: 258), Lacan trabalha as "não-relações", sob a afirmativa de que não há relação sexual. Diz da não-relação do significante e do significado, do gozo e do Outro, do homem e da mulher. A partir desse seminário, para Lacan, o pressuposto psicanalítico já não é mais o de um sujeito que fala e, como tal, barrado pelo significante; agora se trata de um corpo vivo com o gozo que o afeta.

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