PSICANÁLISE E LINGUAGEM
Ilka Franco Ferrari
Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona,
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da PUC-Minas.
Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona,
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da PUC-Minas.
RESUMO
Busca-se apresentar, por meio de alguns textos eleitos nas obras de Freud e Lacan,
a abordagem peculiar que esses autores fazem da linguagem, já que ambos consideram que a palavra se reveste de importância na direção do tratamento e leva a modificações do sintoma.
Palavras-chave: linguagem, inconsciente, intersubjetividade, lingüisteria
Na atualidade, até os leigos dão notícia de que a
prática psicanalítica valoriza a palavra. Se, para muitos, no entanto,
ainda resulta estranho que os "problemas" de uma pessoa possam ser
modificados porque ela fala sobre eles, para Freud, já no século XIX e
início do século XX, a idéia de cura esteve sempre associada à
possibilidade de o inconsciente se apresentar pela linguagem.
Em "Algumas lições elementares de psicanálise"
(1940 [1938]/1975), ciente de que a criação da psicanálise o havia
levado a caminhos diferentes daqueles até então percorridos no ambiente
psi, Freud foi bastante crítico em relação à Psicologia da época que,
segundo ele, durante muito tempo não ouvira as incessantes batidas em
seus portões do conceito de inconsciente pedindo para entrar. Preocupado
em fazer ciência a partir dessas descobertas, fez questão de marcar que
a filosofia e a literatura daquela época quase sempre haviam manipulado
o conceito de inconsciente de forma distraída, e que a ciência ainda
não havia conseguido encontrar uso para o mesmo.
Seguiu adiante com sua experiência clínica e,
quanto mais a comunidade científica o marginalizava, mais ele se
convencia de que o trabalho científico que desenvolvia era a "tradução
de processos inconscientes em conscientes, assim preenchendo as lacunas
da percepção consciente" (Freud, 1940 [1938]/1975: 321). Ao utilizar a
expressão "tradução" para explicar o que ocorre no nível dos sistemas do
aparelho psíquico, não resta dúvida de que já falava de linguagem e
demarcava o poder das palavras na cura.
Entre os autores pós-freudianos, Lacan se
destaca naquilo que diz respeito à forma categórica com que apresenta os
fundamentos que a psicanálise retira da linguagem, chegando a afirmar
que a psicanálise só é possível porque o inconsciente está estruturado
como uma linguagem.
No momento em que Lacan afirmava que o
inconsciente está estruturado como uma linguagem, a lingüística
estrutural se destacava como o exponencial da linguagem e buscava
mostrar as propriedades gerais de todas as estruturas possíveis, informa
Milner (1991: 15). De acordo com esse autor, o fato de Lacan ter feito
essa afirmação sobre o inconsciente o levou ao encontro da ciência
lingüística, a mais capaz de desenvolver as propriedades das estruturas
em geral, uma vez que objetivava compreender "o que é estar estruturado"
e, também, porque dizia de uma estruturação típica, ou seja, a
estruturação do inconsciente.
Surgiram, assim, questões importantes e, entre
elas, estava a pergunta: há uma estrutura particular do inconsciente que
não seja a de uma linguagem qualquer? Isso fez com que os lacanianos,
em seus programas de pesquisa, se dividissem entre os que estudavam as
propriedades mínimas e gerais de toda estrutura, seja qual for, e os que
investigavam as propriedades particulares que fariam com que o
inconsciente fosse tal estrutura, e não outra.
Milner (1991) afirma, ainda, que são três os
fatores que fazem com que a lingüística, a ciência da linguagem,
continue interessando à psicanálise, ainda que em 1956 esse interesse
fosse maior: a constatação da existência de propriedades que fazem com
que a linguagem não seja uma estrutura qualquer; as perguntas sobre tais
propriedades; e a constatação de que o inconsciente não é qualquer
estrutura.
CONSIDERAÇÕES SOBRE FREUD
No texto "O interesse da psicanálise para as ciências não psicológicas" (1913/ 1975), ao abordar a relação entre filologia e psicanálise, Freud demarcou seu conceito de linguagem. Para ele, ela não deve ser entendida apenas como a expressão do pensamento por meio de palavras, mas deve incluir a linguagem dos gestos e todos os outros meios pelos quais a atividade mental pode ser expressa, como, por exemplo, a escrita.
CONSIDERAÇÕES SOBRE FREUD
No texto "O interesse da psicanálise para as ciências não psicológicas" (1913/ 1975), ao abordar a relação entre filologia e psicanálise, Freud demarcou seu conceito de linguagem. Para ele, ela não deve ser entendida apenas como a expressão do pensamento por meio de palavras, mas deve incluir a linguagem dos gestos e todos os outros meios pelos quais a atividade mental pode ser expressa, como, por exemplo, a escrita.
Nesse texto, Freud utiliza a experiência
analítica de interpretar sonhos para esclarecer seu pensamento sobre a
linguagem. Segundo ele, o psicanalista, ao fazer uma tradução da
linguagem do sonho para a da vigília, se convence de que a linguagem
onírica faz parte de um sistema arcaico de expressão, nos moldes do
sentido antitético apresentado pelas mais antigas raízes das línguas
históricas. Diante da constatação de que os meios de representação, nos
sonhos, são predominantemente imagens visuais, e não palavras, Freud
acreditou ser mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de
escrita, escrita pictórica, como os hieróglifos egípcios, nos quais
alguns elementos não se destinam a ser interpretados ou lidos, mas têm
intenção de servir de determinativos, isto é, de estabelecer o
significado de algum outro elemento.
Em sua obra, diversas vezes o valor da palavra é
ressaltado e defendido com a veemência de quem tem a convicção de uma
descoberta preciosa. Alguns de seus textos se tornaram referências
obrigatórias sobre o tema. Sua "Conferência I" (1915-1916), início de
outras pronunciadas aos sábados à noite na Faculdade de Medicina de
Viena, é uma delas. "Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente",
começa Freud, precisando as diferenças entre o tratamento psicanalítico e
o médico. Já sentindo a forte dificuldade apresentada pelo mundo
científico em aceitar que, além do intercâmbio de palavras entre
paciente e analista, nada acontece em um tratamento psicanalítico, Freud
não se intimidou e ali apresentou seu método de tratamento,
esclarecendo que "O paciente fala de suas experiências passadas e de
suas impressões atuais, queixa-se, [...] reconhece seus desejos e seus
impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de
pensamento do paciente..." (Freud, 1915-1916: 29).
O alerta público sobre a insensatez que a
sociedade atribuía a esse novo método terapêutico é estendido ao mundo
dos familiares dos pacientes, em geral, como dizia Freud, mal informados
sobre de que as palavras são capazes. Se o psicanalista se dedica a
ouvir palavras, segue Freud, é porque são mágicas, suscitam afetos,
tornam as pessoas jubilosas ou as levam ao desespero, são meio de
influência entre os homens... Conforme se constata, não é difícil
imaginar alguns dos motivos que faziam com que houvesse aumento
crescente do público que : comparecia a essas conferências.
É ainda interessante observar que, já em suas
conferências pronunciadas na Clark University, depois denominadas
"Lições", Freud (1910/1975) marcava a diferença mencionada entre médicos
e psicanalistas. Na "Primeira lição", ele mostra que os médicos de sua
época viam os pacientes histéricos como transgressores das leis de sua
ciência, uma vez que as particularidades dos fenômenos histéricos os
deixavam em posição de leigos. Diante da impotência médica, restava aos
pacientes a privação da simpatia e do interesse desses profissionais.
Segundo seu editor (Strachey, 1969/ 1975),
Freud, ao defender a análise praticada por não-médicos, produz um relato
não-técnico da teoria e da prática, provavelmente o mais bem-sucedido,
denominado "A questão da análise leiga" (1926/1975). Nele, como é bem
conhecido, Freud cria a chamada "Pessoa Imparcial", com quem dialoga
sobre a psicanálise, partindo da idéia de que ela assistiu às
indagações, feitas por um psicanalista, sobre os sintomas neuróticos que
alguém apresentava, e daí exclama: "Então agora saberemos o que o
analista faz com o paciente a quem o médico foi incapaz de ajudar!" (p.
213). Dentro do cenário, Freud lhe responde que nada acontece entre
eles, salvo que conversam, e observa que as feições da Pessoa Imparcial
revelaram sinais inegáveis de relaxamento e alívio, ao ouvir o que ele
acabava de falar. Mas, continua Freud, elas revelavam, também, certo
desprezo, como se a Pessoa Imparcial estivesse pensando: "Nada mais que
isto? Palavras, palavras, palavras, como diz o príncipe Hamlet" (p.213).
Na verdade, desde a época da hipnose Freud já
notava a importância da palavra do médico como efeito de sugestão na
associação de idéias. Em Paris, para estudar com Charcot, escreveu à
futura esposa que sentia o quanto estava mudando, e que aquilo que o
afetava era Charcot, homem com toque de gênio, que abalava suas metas e
opiniões. Comentou com ela que, algumas vezes, saía de suas aulas como
se estivesse saindo de Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição,
ainda que admitisse: "Mas ele me exaure; quando me afasto, não tenho
vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens" (1893/1975: 20).
No entanto, se a partir de Charcot Freud vê a
histeria de uma nova forma, são Bernheim e seu grupo de Nancy que
inspiram sua psicoterapia catártica, princípio de uma terapia pela
palavra. Bernheim afirmava que os efeitos do hipnotismo podiam também
ser obtidos com o paciente em estado de vigília, por meio de sugestão, e
a lógica dessa dissolução da hipnose na sugestão, como afirma
Roudinesco (1998), os conduziu ao que se chamaria de psicoterapia.
Seguindo uma trajetória própria, Freud não
tardou em verificar que, ao limpar a mente por meio das fantasias
relatadas, era possível obter algo mais que um
afastamento passageiro das repetidas perturbações psíquicas. O sintoma
também desaparecia quando a paciente recordava e exteriorizava o afeto
relativo à ocasião e ao motivo do aparecimento desse sintoma pela
primeira vez. Concluiu, nessa época, que traduzir em palavras o trauma
mais o afeto que lhe correspondia levava à supressão dos sintomas.
Seus diferentes modos de desenvolver o aparelho
psíquico mostram, porém, que algo escapava à transposição em palavras.
Ao estabelecer os processos primário e secundário, por exemplo, ele já
dizia de dois idiomas distintos, ou seja, signo-coisa para um e
associação de palavras para o outro. Deparou-se, também, com o fato de
que o inconsciente fala mais de um dialeto, ou seja, para cada forma
diversa de neurose, um linguajar.
No entanto, ainda que observasse que cada
neurose tinha sua forma de expressão, Freud manteve uma maneira de
pensar a linguagem sustentada na construção de que o inconsciente é um
sistema que só sabe desejar. Isso porque, para ele, no inconsciente há a
inscrição deixada pela chamada "experiência de satisfação". O
inconsciente deseja o reencontro com a satisfação originária e, assim,
em seu inconsciente, o sujeito sempre diz o mesmo, ou seja, a fórmula de
sua satisfação. Desse modo, existe algo da ordem do impossível, que o
inconsciente tenta dialetizar em suas produções.
De acordo com isso, Tizio (1991: 24) afirma que
"a gramática é, para Freud as leis de declinação, ou seja, as derivações
possíveis do objeto perdido". Analisar as declinações é fazer o caminho
que pode chegar à formulação, supostamente primeira, que originou o
produto expresso na fala. Daí, diz Tizio (1991), é que podemos
compreender a ênfase de Lacan em afirmar que os sonhos se traduzem .
como uma tarefa de latim.
Observar que Freud atribuiu poder de cura à
palavra é, de acordo com u que se vem desenvolvendo neste texto,
reafirmar que ele o fez de modo diferente do utilizado até então. Outras
práticas já consideravam a palavra como possível efeito, no real e,
entre elas, podem ser citadas a medicina pré-científica, os rituais de
magia, o ato da confissão religiosa, a técnica de sugestão... Em
"Análise leiga" (1926/1975), no entanto, encontra-se um Freud empenhado
em diferenciar a psicanálise da magia. Em determinado momento, responde à
Pessoa Imparcial que a psicanálise não é uma mágica porque seus efeitos
não são rápidos, e o atributo essencial da magia, diz ele, é a rapidez
do sucesso. Ali ele também a diferencia do princípio da confissão que a
Igreja Católica pratica, ou seja, ao confessar, o pecador conta o que
sabe, enquanto, na análise, o neurótico tem mais a dizer, porque, ao
falar, articula um saber não-sabido.
Assim, demonstrando grande avanço na forma de
pensar, Freud ensina que nem tudo pode ser dito e que a cura deve se
nortear, principalmente, pelo que não se pode dizer Coloca, de forma
clara, o limite do poder da palavra, já que nela há a vertente da
inércia, da mudez, e o problema se centra, então, naquilo que emerge do
silêncio.
Existem, dessa forma, como escreve Tizio (1991),
duas vertentes da linguagem em Freud e ambas evidenciando a dificuldade
da psicanálise com seu objeto: a) a que remete ás associações do
paciente em uma cadeia significante, chamada "os usos lingüísticos", e
que possui possibilidades de deciframento, de declinação, sendo,
conseqüentemente, da ordem do particular; b) a muda, em que as
associações se detêm e a declinação é impossível; possuí características
de escrita comparadas aos hieróglifos, aquela da "linguagem
fundamental", assim chamada em referência a Schreber, e que diz do
desejo indestrutível, das marcas de uma satisfação que persiste
coerente.
LACAN: O TEMPO DA INTERLOCUÇÃO E DA INTERSUBJETIVIDADE
No texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1958/1998), Lacan escreve que um primeiro estudo da paranóia, realizado por ele trinta anos antes, acabou por levá-lo ao limiar da psicanálise. Tratava-se, como se pode concluir, de sua tese de doutorado, quando já demarcava a existência de um tipo especial de sintaxe na loucura, uma produção criativa na psicose, passível de compreensão, porque não se reduzia propriamente à loucura e, sim, às leis de sentido.
LACAN: O TEMPO DA INTERLOCUÇÃO E DA INTERSUBJETIVIDADE
No texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1958/1998), Lacan escreve que um primeiro estudo da paranóia, realizado por ele trinta anos antes, acabou por levá-lo ao limiar da psicanálise. Tratava-se, como se pode concluir, de sua tese de doutorado, quando já demarcava a existência de um tipo especial de sintaxe na loucura, uma produção criativa na psicose, passível de compreensão, porque não se reduzia propriamente à loucura e, sim, às leis de sentido.
A leitura "De nossos antecedentes" (1966), texto
publicado em Escritos, favorece o entendimento do ingresso de Lacan no
universo da psicanálise freudiana. Nele, Lacan escreve que sua entrada
na psicanálise se deu em função de sua fidelidade ao invólucro formal do
sintoma, verdadeiro traço clínico pelo qual tomava gosto, já que tal
invólucro podia ser revertido em efeitos de criação, bem observados em
Aimée. Essa paciente psicótica, que conjugava um espaço poético com uma
escansão abissal, conforme afirma Lacan, mostrava que, na psicose, havia
um efeito positivo, um estilo sujeito às leis de sentido e, portanto,
compreensível. Para ele, tal observação só foi possível porque, ao
transpor as portas da psicanálise, logo reconheceu nessa prática
preconceitos de saber muito mais interessantes, por serem aqueles que
devem ser reduzidos à escuta.
Essa idéia de uma "compreensão" possível é
correlata á noção de intersubjetividade e pode ser observada em
"Para-além do princípio de realidade" (1936/1998), texto em que Lacan
comenta que Freud, determinado por sua preocupação em curar, reconheceu
que a maioria dos fenômenos psíquicos do homem relacionava-se,
aparentemente, com uma função de relação social. Diante de tal
constatação, diferente de outros médicos de sua época, Freud não excluiu
a via que, por si mesma, abria o acesso mais comum a esses fenômenos,
ou seja, o testemunho do próprio sujeito. A linguagem, enquanto signo,
é, assim, o dado da experiência analítica, mas o psicanalista,
"exatamente por não desvincular a experiência da linguagem da situação
que ela implica, a do interlocutor" (Lacan, 1936/ 1998: 86), mostra que a
linguagem, antes de significar alguma coisa, significa ara alguém.
O homem - expressão utilizada por Lacan - que fala dirige-se ao
psicanalista e este, ao estar presente e escutar considera que "o que
ele diz ‘pode não ter nenhum sentido', mas o que ele lhe diz contém
sentido" (1936/1998: 86).
Assim, produz-se um sujeito porque existe um
Outro da compreensão, aquele que decide seu valor humano, seu sentido. É
evidente que essa situação da intersubjetividade, baseada na
interlocução, se centra na tópica imaginária, no outro imaginário. Nela,
a palavra remete à relação com o outro e não à cadeia significante, ou
seja, o sujeito que surge é o do sentido, aquele que precisa de um outro
da intencionalidade para existir. Este não é, ainda, o sujeito do
significante desenvolvido por Lacan.
A PACIFICAÇÃO PELA PALAVRA
O desenvolvimento das idéias mencionadas leva Lacan a se interessar pela questão da agressividade presente na relação especular. Isso o faz escrever "A agressividade na psicanálise" (1948/1998) e o leva, também, a desenvolver idéias em que se observa que falar é renunciar à agressividade. A palavra é pacificadora, pacifica a luta travada pelo reconhecimento. Surge, assim, a valorização dada ao simbólico e, a partir daí, Lacan formulará que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mesmo que essa formulação seja, inicialmente, mais filosófica do que baseada nas leis lingüísticas. No princípio, ele recorre à noção de estrutura de linguagem formulada por Saussure e Jakobson, mas também utiliza a noção de estrutura da palavra existente em Kojève, a partir de Hegel, para fazer tal afirmação.
A PACIFICAÇÃO PELA PALAVRA
O desenvolvimento das idéias mencionadas leva Lacan a se interessar pela questão da agressividade presente na relação especular. Isso o faz escrever "A agressividade na psicanálise" (1948/1998) e o leva, também, a desenvolver idéias em que se observa que falar é renunciar à agressividade. A palavra é pacificadora, pacifica a luta travada pelo reconhecimento. Surge, assim, a valorização dada ao simbólico e, a partir daí, Lacan formulará que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mesmo que essa formulação seja, inicialmente, mais filosófica do que baseada nas leis lingüísticas. No princípio, ele recorre à noção de estrutura de linguagem formulada por Saussure e Jakobson, mas também utiliza a noção de estrutura da palavra existente em Kojève, a partir de Hegel, para fazer tal afirmação.
Hegel e Kojève (Miller, 1994) pensavam que a
estrutura da palavra se fundamentava no princípio da mediação, ou seja,
que não há simetria entre o locutor e o que escuta. Aquele que ouve está
em posição de mestre, já que decide o sentido do que pode ter sido
dito. A palavra, ainda que mediadora, é então dessimétrica, o que é bem
diferente do que pensava Saussure. Surge, então, o Outro, não como o
Outro da linguagem, mas, sim, como garantidor, testemunha. Surge a
concepção da palavra verdadeira, palavra pela qual o sujeito só se
designa por meio de alusão, já que supõe o Outro que escuta e decide o
sentido, palavra que deve ser liberada para favorecer a cura pela
simbolização. Existindo a assimetria, vale lembrar que o analista pode
introduzir nova pontuação, ao ouvir o que o paciente fala, na tentativa
de ratificar sua subjetividade.
Como diz Tizio (1991), por meio dos "usos
lingüísticos", já formulados por Freud, Lacan elabora uma concepção de
simbolização totalizadora e, conseqüentemente, de pacificação do
imaginário, já que tudo poderia ser reabsorvido pelo simbólico. Vê-se
que, num momento em que se dizia claramente freudiano, Lacan acaba por
contrariar a idéia de um mal-estar que é próprio da civilização, muito
discutido por Freud. Só mais tarde ele notará que não se tratava de uma
palavra prisioneira a ser liberada, mas, sim, de "uma satisfação retida
que não passava pela palavra", continua esta autora (p. 28).
O que acontece é que, depois de afirmar que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem, influenciado pelos
autores já citados, Lacan se esforçou para unir as estruturas da
linguagem e da palavra, que então se faziam presentes em sua construção
teórica. Conforme afirma Miller (1994: 100), o que se conhece como
gráfico do desejo "é a redução, em uma só, desta dupla estrutura [...]".
Nele se pode observar que a estrutura da linguagem obriga que se isole o
conjunto dos significantes, o qual deve ser situado no lugar do Outro,
na estrutura da palavra; neste gráfico nota-se, ainda, que a dessimetria
implica que o Outro decida o sentido do que se diz, mas, exatamente por
ser o destinatário da mensagem, é ainda o lugar do código que permite
decifrar o que é dito. Une, enlaçando um termo próprio da estrutura da
linguagem, o conjunto de significantes e um termo próprio da estrutura
da palavra, o sujeito.
Dessa união, por si só incompreensível e
criticada pelos estruturalistas, a exemplo de Lévi-Strauss, surge o
sujeito barrado, efeito da cadeia significante, e, por isso, no gráfico,
Lacan lhe dá o mesmo lugar do significado.
Acontece que, para Lacan, a estrutura, diferentemente do modo de pensar dos estruturalistas, não é uma construção, como bem se pode ler em Miller (1994). Ao considerar a estrutura como a própria linguagem, ele raciocina que, se a linguagem preexiste ao sujeito, ela é causa e, como tal, tem efeitos, a exemplo do efeito de sujeito. Sujeito que não é transportado pela cadeia significante, mas, si inserido nessa cadeia e que paga um preço por isso, que é a perda do ser.
Acontece que, para Lacan, a estrutura, diferentemente do modo de pensar dos estruturalistas, não é uma construção, como bem se pode ler em Miller (1994). Ao considerar a estrutura como a própria linguagem, ele raciocina que, se a linguagem preexiste ao sujeito, ela é causa e, como tal, tem efeitos, a exemplo do efeito de sujeito. Sujeito que não é transportado pela cadeia significante, mas, si inserido nessa cadeia e que paga um preço por isso, que é a perda do ser.
Ao observar que a estrutura da linguagem tinha,
além de efeito, um produto, algo que se perde, algo que permanece em seu
exterior, Lacan nomeia tal produto de "objeto a". Para dar conta de tal
articulação, coloca o "objeto a" naquilo que chamou de estrutura do
discurso, estrutura esta responsável por realizar a recuperação daquilo
que ficou exterior à estrutura da linguagem e, assim, transformar a
perda em produção.
Se a linguagem preexiste, a simbolização
necessita de um começo. Dessa forma, Lacan desenvolve a noção de que o
começo deve ser uma metáfora fundamental, já que, segundo Freud, a
linguagem é a perda da coisa. Surge o "Nome do Pai", metáfora
fundamental que metaforiza nada mais nada menos que Das Ding, a coisa
freudiana, promovendo a construção das estruturas clínicas. Se antes o
pai do Édipo freudiano diz da função simbólica sujeita ao
reconhecimento, agora o pai freudiano é um significante fundamental,
aquele que permite a simbolização. Se a linguagem era um campo ordenado
pela palavra e se tratava do reconhecimento de um sentido, agora,
passando pelas leis da linguagem, Lacan introduz a dimensão do sem
sentido.
Essa dimensão do sem sentido só pode surgir,
como se nota, no momento em que Lacan se deparou com o esforço de unir a
estrutura da linguagem e a da palavra. Isso o leva à organização
sincrônica dos significantes, bem como à diacronia dos mesmos, ou seja, à
sucessão dos significantes em uma estrutura de remissão. A ordem
simbólica é, assim, apreendida como conjunto diacrítico de elementos
discretos, o que significa que os elementos adquirem valor é na relação
com os outros, em uma estrutura combinatória. A partir daí, é do sem
sentido do significante e se produz a significação.
Nessa ordem diacrítica, oposicional, da cadeia
significante, obrigatoriamente é levado a considerar a existência de
pelo menos um significante que não forma parte do conjunto de
significantes, o que resultava bem diferente das propostas do
estruturalismo da época de Lacan. A exigência estruturalista de então
supunha que onde tudo é significante necessariamente haverá um conjunto
que os comporte, ou seja, cada significante faria parte desse conjunto, o
que não comporta algum que permaneça excluído.
Conforme se observa, Lacan alterou a hipótese
estruturalista, foi muito criticado por isso, mas encontrou um matema
para escrever o que propunha: S(A), significante de uma falta no Outro.
Esses avanços trouxeram modificações na clínica
e, como escreve Tizio (1991: 30), agora já "não se tratava de dar
sentido, de dar explicações, de compreender, enfim, de que o analista
transmitisse seu saber, mas, sim, de esgotar a significação subjetiva". O
sujeito, como já escrito, é definido como efeito de estrutura. O tempo
passa a ser lógico e de efeito retroativo, ou seja, tempo de ver,
compreender e concluir, na ênfase de que é a partir do presente que se
faz relato histórico, assim como se faz o futuro. A realidade
fantasística aparece no relato do paciente, via enunciação, e diz de um
resto que permanece fora da referência lingüística, assegurando que nem
toda satisfação foi apagada para o sujeito.
A LINGÜISTERIA
É surpreendente, conforme nos diz Miller (2003), o quanto Lacan, no começo de seu ensino, confiava no estruturalismo jakobsoniano modificado por Lévi-Strauss. Naquela época, ao tentar conciliar a psicanálise com o discurso da ciência, Lacan "considerava que a lingüística estrutural era a ciência piloto das ciências do homem, eminentemente válida para a psicanálise" (Miller, 2003: 21). Chega, no entanto, o momento em que Lacan abandona a ênfase estrutural, o que é resultado de sua teorização sobre o real e o gozo.
Um dia percebi que era difícil não entrar na lingüística a partir do momento em que o inconsciente estava descoberto [...] mas se considerarmos tudo que, pela linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito [...] então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavr5~ Chamarei a isto lingüisteria (Lacan, 1981: 25).
Se "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (Lacan, 1957/1998) é um texto que retoma, de forma mais clara, a questão da linguagem e da palavra, Mais, ainda (Lacan, 1975/1985) é um seminário de referência sobre sua ruptura com a lingüística estrutural e, nele, Lacan leva muito a sério a discussão do conceito de linguagem e da palavra como comunicação.
A LINGÜISTERIA
É surpreendente, conforme nos diz Miller (2003), o quanto Lacan, no começo de seu ensino, confiava no estruturalismo jakobsoniano modificado por Lévi-Strauss. Naquela época, ao tentar conciliar a psicanálise com o discurso da ciência, Lacan "considerava que a lingüística estrutural era a ciência piloto das ciências do homem, eminentemente válida para a psicanálise" (Miller, 2003: 21). Chega, no entanto, o momento em que Lacan abandona a ênfase estrutural, o que é resultado de sua teorização sobre o real e o gozo.
Um dia percebi que era difícil não entrar na lingüística a partir do momento em que o inconsciente estava descoberto [...] mas se considerarmos tudo que, pela linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito [...] então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavr5~ Chamarei a isto lingüisteria (Lacan, 1981: 25).
Se "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (Lacan, 1957/1998) é um texto que retoma, de forma mais clara, a questão da linguagem e da palavra, Mais, ainda (Lacan, 1975/1985) é um seminário de referência sobre sua ruptura com a lingüística estrutural e, nele, Lacan leva muito a sério a discussão do conceito de linguagem e da palavra como comunicação.
De acordo com Miller (2003), em Mais, ainda
Lacan se refere ao conceito di~ linguagem como derivado daquilo que ele
chamou de alíngua, ou seja, "a palavra antes de seu ordenamento
gramatical e lexicográfico" (Lacan, 1975: 257), e, ali, a palavra é
concebida como gozo e não mais como comunicação. Assim, a linguagem e
sua estrutura, "até então tratadas como um dado primário, apareceram
como secundárias e derivadas" (id.: 258).
Logo no início desse seminário, Lacan faz
questão de afirmar: "Meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem não é do campo da lingüística" (1975/1985: 25). Segundo ele,
tal afirmação era uma porta aberta para o que se poderia ver comentado
em L’étourdit, ou seja, o que se diga fica esquecido detrás do que se
diz no que se ouve. Desenvolvendo suas idéias, afirma mais adiante: "O
que eu adiantava, ao escrever alíngua numa só palavra, era mesmo aquilo
pelo que eu me distingo do estruturalismo, na medida em que ele
integraria a linguagem à semiologia - e essa me parece uma das numerosas
luzes que projetou Jean-Claude Milner" (p. 137)
O caminho que Lacan elege em Mais, ainda para ir
demarcando a distância existente entre a lingüística e a lingüisteria
supõe uma passagem pelas vias do amor como signo, signo que aponta para a
troca de razão, a troca de discurso. Discurso como laço social, fundado
sobre a linguagem, na particularidade do uso do significante, que, como
tal, não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, a um
modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como laço entre
aqueles que falam. Nota-se, então, que nesse seminário, como bem demarca
Miller (2003: 258), Lacan trabalha as "não-relações", sob a afirmativa
de que não há relação sexual. Diz da não-relação do significante e do
significado, do gozo e do Outro, do homem e da mulher. A partir desse
seminário, para Lacan, o pressuposto psicanalítico já não é mais o de um
sujeito que fala e, como tal, barrado pelo significante; agora se trata
de um corpo vivo com o gozo que o afeta.
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