SENHORAS E SENHORES:
Talvez me permitiriam, por agora, a título de pausa no tom árido destas conferências, falar-lhes a respeito de algumas coisas que têm muito pouca importância teórica, mas que lhes interessam de perto, na medida em que os senhores demonstram uma atitude amistosa para com a psicanálise. Imaginemos, por exemplo, que, nas suas horas de lazer, os senhores tomam um romance alemão, inglês ou americano, no qual esperam encontrar um retrato das pessoas e da sociedade contemporâneas. Lidas algumas páginas, encontram um primeiro comentário sobre psicanálise e, logo depois, outros comentários mais, embora o contexto não pareça necessitar deles. Não devem os senhores imaginar tratar-se, aí, de aplicar psicologia, para um melhor entendimento dos personagens do livro ou das suas ações — conquanto, diga-se de passagem, haja outras obras, mais sérias, nas quais se faz realmente uma tentativa em tal sentido. Não, esses comentários são, na sua maior parte, comentários jocosos com que o autor tenciona exibir suas vastas leituras e sua superioridade intelectual. E nem sempre os senhores ficarão com a impressão de que realmente conhece aquilo de que está falando. Ou, então, os senhores podem ir a uma reunião social a fim de se divertirem, e isto não precisa ser necessariamente em Viena. Dentro de pouco tempo, a conversação gira em torno de psicanálise, e os senhores ouvirão as mais diferentes pessoas emitindo sua opinião a respeito dela, na sua maioria em tom de inabalável certeza. Muito freqüentemente, o julgamento é desdenhoso, ou, amiúde, difamatório, ou, no mínimo, jocoso. Se os senhores forem imprudentes ao ponto de revelarem o fato de que conhecem algo acerca do assunto, essas pessoas lhes cairão em cima, unanimemente, pedirão informações e explicações, e logo os convencerão de que todos esses julgamentos severos a que elas chegaram carecem de qualquer base de conhecimento, de que dificilmente algum desses críticos alguma vez abriu um livro referente à análise, ou, no caso de assim terem procedido, de que não devem ter ido além da primeira resistência despertada pelo contato com esse material novo.
Os senhores, talvez esperam que uma introdução à psicanálise também lhes dê instruções sobre quais os argumentos que deveriam usar para corrigiresses erros evidentes a respeito da análise, sobre que livros deveriam recomendar para informações mais precisas, ou mesmo que exemplos deveriam apresentar na discussão, extraídos de suas leituras ou de sua experiência, a fim de modificar a atitude dos circunstantes. Devo pedir-lhes que não façam nada disso. Seria inútil. A melhor conduta para os senhores seria ocultar completamente o conhecimento superior que possuem. Se isto já não é possível, limitem-se a dizer que, na medida dos seus conhecimentos, a psicanálise é um ramo especial do conhecimento, muito difícil de entender e de ter uma opinião formada a seu respeito, que se ocupa de coisas muito sérias, de modo que não serão algumas anedotas que farão com que uma pessoa consiga aproximar-se da análise, e, enfim, seria melhor encontrar algum outro brinquedo para entretenimento social. Ademais, naturalmente os senhores não participarão de tentativas de interpretação, se pessoas incautas referirem seus sonhos; e os senhores resistirão à tentação de cortejar favores para a análise através de relatos de suas curas.
Os senhores, todavia, podem perguntar-se por que essas pessoas — tanto aquelas que escrevem livros, como essas de uma reunião social — se conduzem de forma tão lamentável; e os senhores podem inclinar-se a pensar que a responsabilidade disto está não só nessas pessoas, mas também na psicanálise. Também penso assim. Aquilo que os senhores encontram como preconceito na literatura e na sociedade é efeito posterior de um julgamento precedente, ou seja, o julgamento que os representantes da ciência oficial fizeram a respeito da jovem análise. Uma vez, queixei-me disto num relato histórico que escrevi, e não o farei de novo — talvez aquela única vez já fosse demais —, porém o fato é que não houve violação da lógica, não houve violação da propriedade e do bom gosto a que não recorressem, então, os opositores científicos da psicanálise. A situação faz lembrar o que realmente era posto em prática na Idade Média, quando um malfeitor, ou mesmo um simples adversário político, era colocado no pelourinho e exposto aos maus-tratos da populaça. Talvez os senhores não possam se afigurar claramente a que ponto se estendem as características de ralé de nossa sociedade, e de que má conduta são capazes as pessoas, quando se sentem fazendo parte de uma turba e aliviadas da responsabilidade pessoal. No início daquela época, eu estava mais ou menos sozinho e logo vi que não havia futuro nas polêmicas, vi, contudo, que era igualmente absurdo lamentar-se e invocar a ajuda de espíritos mais benignos, de vez que não havia instâncias a que dirigir taisapelos. Assim sendo, tomei outro caminho. Fiz a primeira aplicação prática da psicanálise, explicando a mim mesmo que essa conduta da multidão era uma manifestação da mesma resistência contra a qual eu tinha de lutar nos pacientes em particular. Abstive-me de polêmicas e influenciei na mesma direção os meus seguidores, quando estes pouco a pouco surgiram. Esse procedimento foi correto. A proscrição que pesava sobre a psicanálise naqueles dias tem sido suspensa desde então. Contudo, da mesma forma como uma fé abandonada sobrevive como superstição, assim como uma teoria que foi posta de lado pela ciência continua a existir como crença popular, também o banimento inicial da psicanálise pelos círculos científicos persiste atualmente no desprezo das anedotas dos leigos, quando escrevem livros ou conversam. Logo, isto não mais surpreenderá os senhores.
Não devem esperar, no entanto, ouvir a boa notícia de que a luta contra a psicanálise terminou, e que esta, afinal, foi reconhecida como ciência e aceita como tema de ensino nas universidades. Não é nada disso. A luta continua, se bem que sob formas mais educadas. O que também é novo é o fato de se haver formado uma espécie de crosta isolante, na sociedade científica, entre a análise e os seus adversários. Essa crosta consiste em pessoas que admitem a validade de determinadas partes da análise, e admitem apenas esse tanto, sujeito às mais divertidas restrições, mas que, por outro lado, rejeitam outras partes dela, fato que não proclamam com muito alarde. Não é fácil adivinhar qual o fator determinante de tal escolha. Parece depender de simpatias pessoais. Uma pessoa fará objeções à sexualidade, uma outra ao inconsciente; o que parece especialmente impopular é o caso do simbolismo. Embora a estrutura da psicanálise esteja inacabada, ela apresenta, mesmo nos dias atuais, uma unidade da qual os elementos componentes não podem ser separados ao capricho de qualquer um: mas esses ecléticos parecem desprezar isto. Jamais me convenci de que esses meio-adeptos, ou adeptos pela quarta parte, baseassem sua rejeição num exame dos fatos. Também se incluem nessa categoria alguns homens de destaque. Na verdade, estes estão excusados pelo fato de que seu tempo e seu interesse pertencem a outras coisas, ou seja, àquelas coisas em cujo domínio tanto realizaram. Nesse caso, porém, não lhes ficaria melhor suspender seu julgamento, em lugar de tomar partido de forma tão decidida? Com um desses grandes homens, certa ocasião, pude realizar uma rápida conversão. Tratava-se de um crítico de renome internacional, que havia acompanhado com benévola compreensão e profética penetração as correntes espirituais da época. Somente vim a conhecê-lo quando ele já passava dos oitenta anos; todavia, ainda era um homem de conversação encantadora. Facilmenteadivinharão a quem me estou referindo. E não fui eu quem introduziu o assunto da psicanálise. Foi ele quem o fez, comparando-se a mim da maneira mais modesta. ‘Sou apenas um literato’, dizia ele, ‘mas o senhor é um cientista e descobridor da natureza. No entanto, há uma coisa que devo dizer-lhe: nunca tive sentimentos sexuais para com minha mãe’. ‘Mas absolutamente não há necessidade de o senhor tê-los reconhecido’, foi minha resposta; ‘nas pessoas adultas, estes são sentimentos inconscientes’. ‘Oh! então é isto o que o senhor pensa!’, disse ele, aliviado, e apertou minha mão. Continuamos a conversar, de maneira muito agradável, por mais algumas horas. Posteriormente, soube que, nos poucos anos de vida que ainda teve, muitas vezes falava na psicanálise de modo amistoso, e agradava-lhe poder usar uma palavra que era nova para ele — ‘repressão’.
Há um ditado corrente segundo o qual nós deveríamos aprender com os nossos inimigos. Confesso que nunca consegui fazer isso; mas pensei que, de qualquer modo, seria instrutivo para os senhores se eu empreendesse um estudo de todas as acusações e objeções que os adversários da psicanálise levantaram contra ela, e se também assinalasse as injustiças e ofensas contra a lógica que tão facilmente nelas poderiam ser reveladas. Mas, ‘depois de pensar bem’, disse a mim mesmo que absolutamente não seria interessante, antes, tornar-se-ia tedioso e desagradável, e seria justamente o que eu estivera evitando cuidadosamente todos esses anos. Assim sendo, devem perdoar-me se não continuo por esse caminho e se os poupo dos julgamentos dos nossos adversários ditos científicos. Afinal de contas, quase sempre se trata de pessoas cuja única prova de competência é a imparcialidade, que elas preservaram, mantendo-se à distância das experiências da psicanálise. Sei, contudo, que há outros casos nos quais os senhores não me deixarão escapar tão facilmente. ‘Não obstante’, me dirão os senhores, ‘existem tantas pessoas às quais não se aplica o seu último comentário. Elas não evitaram a experiência analítica, analisaram pacientes, e talvez elas mesmas tenham sido analisadas; durante algum tempo foram até colaboradores seus. No entanto, chegaram aoutras opiniões e teorias, e, com base nestas, separaram-se do senhor e fundaram escolas independentes de psicanálise. O senhor deveria esclarecer-nos sobre o significado e a importância desses movimentos separatistas, que foram tão freqüentes na história da análise’.
Bem, procurarei fazê-lo; só que com brevidade, pois contribuem menos para uma compreensão da análise do que os senhores poderiam esperar. Estou certo de que os senhores estarão pensando, em primeiro lugar, na ‘Individual Psychology’, de Adler, que, na América, por exemplo, é considerada uma linha de pensamento colateral com a nossa psicanálise e no mesmo nível desta, sendo regularmente mencionada ao lado da psicanálise. Na realidade, a psicologia do indivíduo muito pouco tem a ver com a psicanálise, mas, como decorrência de determinadas circunstâncias históricas, leva, em relação a esta e às suas custas, uma espécie de existência parasita. Os motivos que atribuímos a esse grupo de adversários aplicam-se ao fundador da psicologia do indivíduo apenas em um grau restrito. O seu próprio nome é inadequado e parece ter sido produto de confusão. Não podemos permitir que interfira no emprego legítimo do termo ‘psicologia de grupo’, como se fora uma antítese deste. Ademais, nossa atividade se ocupa, na sua maior parte e sobretudo, da psicologia dos indivíduos humanos. Não me adentrarei numa crítica objetiva à psicologia do indivíduo, de Adler; não há lugar para isto no plano destas conferências introdutórias. Aliás, já tentei fazê-lo uma vez, e não me sinto tentado a mudar nada daquilo que eu disse naquela ocasião. A impressão produzida pelos pontos de vista dele, ilustra-la-ei, porém, com um pequeno episódio datado de época anterior à análise.
Nos arredores da pequena cidade da Morávia em que nasci, e que deixei quando tinha três anos de idade, existe uma modesta estação de cura, magnificamente localizada na floresta. Durante o período escolar, estive lá, diversas vezes, nas férias. Cerca de vinte anos depois, a doença de um parente próximo ensejou que eu visitasse o lugar novamente. No decorrer da conversacom um médico ligado à estação de águas, o qual havia assistido meu parente, perguntei, entre outras coisas, acerca do seu relacionamento com os aldeões — eslovacos, me parece — que constituíam toda a sua clientèle durante o inverno. Contou-me que sua clínica médica se fazia da seguinte maneira. Em suas horas de atendimento, os pacientes entravam na sua sala e ficavam de pé numa fila. Um após o outro adiantava-se e descrevia suas queixas: dor lombar, dor de estômago, cansaço nas pernas, e assim por diante. O médico então o examinava e, após contentar-se com o que observara, fazia o diagnóstico, que era o mesmo para todos os casos. Ele me traduziu a palavra: significava mais ou menos ‘enfeitiçado’. Surpreso, perguntei se os aldeões não faziam objeção ao fato de esse veredicto ser o mesmo para cada paciente. ‘Não!’, replicou ele, ‘eles ficam muito contentes: é o que esperavam. Cada um deles, assim que volta a seu lugar na fila, mostra aos outros, pela fisionomia e pelos gestos, que eu sou um sujeito que entendo das coisas’. Mal adivinhava eu, naquele tempo, em que circunstâncias haveria de encontrar novamente uma situação análoga.
Explicando esses fatos, se um homem é um homossexual ou necrófilo, um histérico sofrendo de ansiedade, um neurótico obsessivo segregado da sociedade, ou um louco furioso, o ‘psicólogo do indivíduo’ da corrente adleriana afirmará que o motivo básico de sua condição é o desejo de auto-afirmar-se, de supercompensar sua inferioridade, de ficar ‘por cima’, de passar da linha feminina para a masculina. Nos meus anos de jovem estudante, costumávamos ouvir algo muito parecido no departamento de pacientes de ambulatório, quando um caso de histeria era apresentado: os pacientes histéricos, assim nos era dito, forjavam seus sintomas para se mostrarem interessantes, para chamar atenção sobre si mesmos. É notável como essas velhas mostras de sabedoria continuam a pulular. Mas, mesmo naquela época, esse arremedo de psicologia não parecia elucidar o enigma da histeria. Deixava por explicar, por exemplo, por que os pacientes não usavam outros métodos para satisfazerem seus propósitos. Naturalmente, deve haver alguma coisa correta nessa teoria dos ‘psicólogos do indivíduo’: uma partícula mínima é tomada pelo todo. O instinto de autopreservação tentará tirar proveito de todas as situações; o ego procurará transformar até mesmo a doença em vantagem sua. Na psicanálise isto se conhece como ‘ganho secundário proveniente da doença’. Deveras, quando pensamos no caso do masoquismo, na necessidade inconsciente de punição e de se autoprejudicar,do neurótico, que tornam plausível a hipótese de haver impulsos instintuais contrários à autopreservação, até nos sentimos abalados em nossa crença na validade geral da verdade banal sobre a qual se ergue a estrutura teórica da psicologia do indivíduo. Uma teoria como esta, contudo, está fadada a ser muito bem recebida pela grande massa do povo, uma teoria que não apresenta complicações, que não introduz conceitos novos, difíceis de compreender, que nada sabe do inconsciente, que com apenas um gesto elimina o problema universalmente opressivo da sexualidade, e que se limita à descoberta de artifícios pelos quais as pessoas tornam fácil a vida. Pois a massa do povo aceita as coisas facilmente: ela não exige mais do que um único motivo à maneira de explicação, não agradece à ciência por sua falta de limites, quer ter soluções simples e saber que os problemas estão solucionados. Ao considerarmos até que ponto vai a psicologia do indivíduo para satisfazer a tais exigências, não podemos evitar a lembrança de uma frase de Wallenstein:
Wär’ der Gedank’ nicht so verwünscht gescheidt,
Man wär’ versucht, ihn herzlich dumm zu nennen.
As críticas feitas por círculos de especialistas de forma tão incessante contra a psicanálise têm lidado com a psicologia do indivíduo, de modo geral, com luvas de pelica. É verdade que, na América, um dos mais respeitados psiquiatras publicou um artigo contra Adler intitulado ‘Enough’, no qual expressou energicamente seu fastio pela ‘compulsão à repetição’ da psicologia do indivíduo. Se outros a trataram muito mais amavelmente, por certo o seu antagonismo à análise tem muito a ver com isso.
Não tenho muita coisa a dizer a respeito de outras escolas que se desmembraram de nossa psicanálise. O fato de assim haverem procedido não pode ser usado a favor ou contra a validade das teorias psicanalíticas. Basta os senhores pensarem nos poderosos fatores emocionais que tornam difícil a muitas pessoas adaptar-se ou subordinar-se a outras, e na dificuldade ainda maior na qual justamente insiste o ditado ‘Quot capita tot sensus’. Quando as diferenças de opinião foram além de certo ponto, a coisa mais sensata consistiu em partir, e, daí em diante, prosseguir por vias diferentes — especialmente quando a divergência teórica envolvia uma modificação no procedimento prático. Suponham, por exemplo, que um analista atribui pouco valor à influência do passado pessoal do paciente e busca a causa das neuroses exclusivamente nos motivos atuais e em expectativas do futuro. Nesse caso, negligenciará a análise da infância; terá de adotar uma técnica inteiramente diferente e terá de compensar a omissão dos eventos advindos da análise da infância mediante um aumento em sua influência pedagógica e mediante a indicação direta de determinados objetivos particulares da vida. De nossa parte diremos, pois: ‘Isto pode ser uma escola de sabedoria; porém, já não é mais análise.’ Ou então outro pode chegar à conclusão de que a experiência de ansiedade no nascimento condiciona todos os distúrbios neuróticos subseqüentes. A partir daí pode achar-se no direito de limitar a análise às conseqüências dessa única impressão e de prometer êxito terapêutico em um tratamento de três ou quatro meses de duração. Conforme haverão de observar, escolhi dois exemplos que partem de premissas diametralmente opostas. É uma característica quase universal desses ‘movimentos de secessão’o fato de que cada um deles, de toda a variada riqueza de temas da psicanálise, apreende apenas um fragmento e se faz independente com base nessa apreensão — escolhendo o instinto de domínio, por exemplo, ou o conflito ético, ou a [importância da] mãe, ou a genitalidade, e assim por diante. Se lhes parece que as secessões desse tipo já são atualmente mais numerosas na história da psicanálise do que em outros movimentos intelectuais, não tenho certeza de que deva concordar com os senhores. Se é este o caso, a responsabilidade deve estar nas relações íntimas, existentes na psicanálise, entre os pontos de vista teóricos e o procedimento terapêutico. Simples diferenças de opinião seriam por muito tempo toleradas. As pessoas gostam de acusar-nos de intolerância, a nós, psicanalistas. A única manifestação dessa feia característica foi precisamente o fato de havermo-nos afastado daqueles que pensam diferentemente de nós. Nenhum outro dano lhes foi feito. Pelo contrário, caíram por sua própria causa, e estão melhor fora, do que anteriormente. Isto porque, com sua separação, geralmente se livraram de uma dessas cargas que nos oprimem — o ódio da sexualidade infantil, talvez, ou o absurdo do simbolismo — e em seu meio são considerados medianamente respeitáveis, o que ainda não se aplica àqueles dentre nós que ficaram para trás. Ademais, ressalvada uma exceção notável, foram eles que se excluíram a si mesmos.
Que outras exigências os senhores fazem em nome da tolerância? Que,quando alguém expressa uma opinião que consideramos totalmente errônea, nós lhe digamos: ‘Muito obrigado por ter expressado essa contradição. O senhor nos está defendendo do perigo da complacência e nos está dando uma oportunidade de mostrar aos americanos que nós somos realmente tão “liberais” como eles sempre desejam ser. A bem da verdade, não acreditamos numa só palavra do que o senhor esteve dizendo, mas isto não faz qualquer diferença. Provavelmente o senhor tem tanta razão como nós. Afinal quem pode, talvez, saber quem está certo? Apesar de nosso antagonismo, permita-nos, por favor, que apresentemos seu ponto de vista em nossas publicações. Esperamos que o senhor seja suficientemente gentil, em troca, para encontrar um lugar para nossos pontos de vista que o senhor contesta.’ No futuro, quando tiver sido atingido plenamente o mau uso da relatividade de Einstein, isto se tornará obviamente o costume regular nos assuntos científicos. Por enquanto, é verdade, ainda não chegamos a tal ponto. À moda antiga, limitamo-nos a apresentar somente as nossas convicções, expomo-nos ao risco de errar porque não há como evitá-lo, e rejeitamos aquilo que está em contradição conosco. Na psicanálise temos usado muito o direito de modificar nossas opiniões, se pensamos ter encontrado algo melhor.
Uma das primeiras aplicações da psicanálise consistiu em nos ensinar a compreender a oposição que os nossos contemporâneos nos movem pelo fato de exercermos a psicanálise. Outras aplicações, de natureza objetiva, podem reivindicar um interesse mais geral. Nosso primeiro propósito, naturalmente, foi o de compreender os distúrbios da mente humana, porque uma notável experiência mostrara que, aqui, a compreensão e a cura quase coincidem, que existe reciprocidade entre uma e outra. E por muito tempo este foi nosso único propósito. Depois, no entanto, percebemos as estreitas relações, a própria identidade interna entre processos patológicos e aquilo que se conhece como processos normais. A psicanálise tornou-se psicologia profunda; e, de vez que nada daquilo que o homem cria ou faz, é compreensível sem a cooperação da psicologia, as aplicações da psicanálise a numerosas áreas do conhecimento, em especial àquelas das ciências mentais, ocorreram espontaneamente, entraram em cena e requereram debate. Essas tarefas, infelizmente, encontraram obstáculos que, arraigados como estavam nas circunstâncias, ainda atualmente não foram superados. Uma aplicação desse tipo pressupõe conhecimento especializado, que um analista não possui, ao passo que aqueles que o possuem, os especialistas, nada conhecem da análise, e talvez nada queiram conhecer. Como resultado, os analistas, como amadores lidando com um equipamento dotado de maiores ou menores recursos, muitas vezes reunidos às pressas, fizeram incursões em áreas de conhecimentos tais como mitologia, história da civilização, etnologia, ciência da religião, etc. Foram tratados pelos peritos dessas áreas de forma não melhor do que o são os infratores em geral: seus métodos e descobertas, na medida em que chamavam atenção, foram liminarmente rejeitados. Essas situações estão melhorando constantemente, e em toda parte há um crescente número de pessoas que estudam psicanálise a fim de utilizá-la em seus setores especializados e a fim de, como se fossem colonizadores, assumir o lugar dos pioneiros. Aqui podemos esperar uma abundante colheita de novos descobrimentos. As aplicações da análise são, também, sempre confirmações dela. Ademais disso, ali onde o trabalho científico está de algum modo distanciado da atividade prática, as inevitáveis diferenças de opinião assumem, por certo, um tom menos extremado.
Sinto-me fortemente atraído a mostrar-lhes todas as aplicações da psicanálise às ciências mentais. São coisas que merecem ser conhecidas por toda pessoa que tenha interesses intelectuais; e não ouvir falar em anormalidade e doença durante determinado tempo seria uma pausa bem merecida. Devo, contudo, abandonar tal idéia: ela também nos afastaria do esquema destas conferências e, para admiti-lo francamente, eu não estaria à altura da tarefa. É verdade que, em algumas dessas regiões, eu próprio dei o primeiro passo; hoje, no entanto, já não abarco mais o mundo inteiro e teria de empreender um amplo estudo, a fim de dominar aquilo que foi realizado desde quando comecei. Qualquer um dos senhores que se tenha desapontado com minha recusa, pode obter compensação nas páginas de nossa revista Imago, que se destina a cobrir as aplicações não-médicas da análise.
Existe um tema, todavia, que não posso deixar passar tão facilmente — assim mesmo, não porque eu entenda muito a respeito dele, e nem tenha contribuído muito para ele. Muito pelo contrário: aliás, desse assunto ocupei-me muito pouco. Devo mencioná-lo porque é da maior importância, é tão pleno de esperanças para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da análise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração. Sinto-me contente com o fato de pelo menos poder dizer que minha filha, Anna Freud, fez desse estudo a obra de sua vida e, dessa forma, compensou a minha falha.
É fácil traçar o caminho que levou a essa aplicação. Quando, no tratamento de um neurótico adulto, estabelecíamos a seqüência dos fatores determinantes de seus sintomas, éramos, com regularidade, reconduzidos ao início de sua infância. O conhecimento dos fatores etiológicos subseqüentes não era suficiente nem para compreender o caso, nem para produzir um efeito terapêutico. Portanto, víamo-nos compelidos a conhecer as peculiaridades da infância; aprendemos uma grande quantidade de coisas, que não poderíamos aprender senão por meio da análise, e pudemos corrigir muitas opiniões, geralmente aceitas, acerca da infância. Reconhecemos que os primeiros anos da infância possuíam uma importância especial — até a idade de cinco anos, possivelmente — por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque esses anos incluíam o primeiro surgimento da sexualidade, que deixa após si fatores causais decisivos para a vida sexual da maturidade. Em segundo lugar, porque as impressões desse período incidem sobre um ego imaturo e débil e atuam sobre este como traumas. O ego não consegue desviar as tempestades emocionais que esses traumas de algum modo provocam, exceto por meio da repressão, e assim adquire na infância todas as disposições para uma doença ulterior e para distúrbios funcionais. Percebemos que a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos e a adaptação à sociedade — ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas. Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação. Não nos surpreendemos se muitas vezes as crianças executam essa tarefa de modo muito imperfeito.Durante esses primeiros anos, muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses — e isto se dá certamente assim em todas aquelas que posteriormente apresentam uma doença manifesta. Em algumas crianças, a doença neurótica não espera até a puberdade, mas irrompe já na infância e dá muito trabalho aos pais e aos médicos.
Não receamos aplicar tratamento analítico a crianças que, ou mostraram inequívocos sintomas neuróticos, ou estavam a caminho de um desenvolvimento desfavorável do caráter. A apreensão, expressa pelos adversários da análise, de que a criança seria prejudicada, mostrou-se infundada. O que ganhamos com esses tratamentos foi havermos conseguido confirmar num ser vivo aquilo que havíamos inferido (de documentos históricos, por assim dizer) no caso dos adultos. No entanto, também para as crianças o ganho foi muito satisfatório. Verificou-se que a criança é muito propícia para tratamento analítico; os resultados são seguros e duradouros. A técnica de tratamento usada em adultos deve, naturalmente, ser muito modificada para sua aplicação em crianças. Uma criança é um objeto psicologicamente diferente de um adulto. De vez que não possui superego, o método da associação livre não tem muita razão de ser, a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise — e a análise como tal — muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto aos pais. Por outro lado, as inevitáveis variantes das análises de crianças, diferentes da análise de adultos, são diminuídas pela circunstância de que alguns dos nossos pacientes conservaram tantas características infantis, que o analista (também aqui adaptando-se ao caso) não pode evitar o emprego, em tais pacientes, de determinadas técnicas da análise infantil. Aconteceu automaticamente que a análise de crianças se tornou domínio das analistas mulheres, e sem dúvida isto continuará assim.
O reconhecimento de que a maioria das nossas crianças atravessa uma fase neurótica no curso desenvolvimental impõe medidas de profilaxia. Pode-se levantar a questão de saber se não seria adequado vir em auxílio de uma criança com a análise, embora não mostre sinais de algum distúrbio, como forma de salvaguardar sua saúde, do mesmo modo como atualmente vacinamos as crianças contra a difteria, sem esperar para ver se contraíram a doença. No momento atual, essa discussão tem apenas interesse acadêmico, contudo me disponho a considerá-la aqui. À grande massa de nossos contemporâneos a simples sugestão de tal medida pareceria uma ofensa monstruosa, e, em vista da atitude para com a análise, manifestada pela maioria das pessoas na condição de pais, qualquer esperança de colocar em prática tal idéia deve ser abandonada, na época atual. Semelhante profilaxia contra a doença neurótica, que provavelmente seria muito eficaz, também pressupõe uma constituição bem diversa da sociedade. A iniciativa para a aplicação da psicanálise à educação deve, hoje, ser buscada em outra área. Vamos tornar claro para nós mesmos qual a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de pôr em prática todos os seus impulsos sem restrição. Fazê-lo seria um experimento muito instrutivo para os psicólogos de crianças; mas a vida seria impossível para os pais, e as próprias crianças sofreriam grave prejuízo, que se exteriorizaria, em parte, imediatamente, e, em parte, nos anos subseqüentes. Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isto ela procurou fazer em todos os períodos da história. Na análise, porém, temos verificado que precisamente essa supressão dos instintos envolve o risco de doença neurótica. Conforme os senhores haverão de se lembrar, examinamos detalhadamente como isto ocorre. Assim, a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila da não-interferência e o Caríbdis da frustração. A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios. E, ademais, devemos levar em conta o fato de que os objetos de nossa influência educacional têm disposições constitucionais inatas muito diferentes, de modo que é quase impossível que o mesmo método educativo possa ser uniformemente bom para todas as crianças. Uma simples reflexão nos diz que até agora a educação cumpriu muito mal sua tarefa e causou às crianças grandes prejuízos. Se ela descobrir o ponto ótimo e executar suas tarefas de maneira ideal, ela pode esperar eliminar um dos fatores da etiologia do adoecer — a influência dos traumas acidentais da infância. Ela não pode, em caso nenhum, suprimir o outro fator — o poder de uma constituição instintual rebelde. Se considerarmos agora os difíceis problemas com que se defronta o educador — como ele tem de reconhecer a individualidade constitucional da criança, de inferir, a partir de pequenos indícios, o que é que está se passando na mente imatura desta, de dar-lhe a quantidade exata de amor e, ao mesmo tempo, manter um grau eficaz de autoridade —, haveremos de dizer a nós mesmos que a única preparação adequada para a profissão de educador é uma sólida formação psicanalítica. Seria melhor que o educador tivesse sido, ele próprio, analisado, de vez que o certo é ser impossível assimilar a análise sem experimentá-la pessoalmente. A análise de professores e educadores parece ser uma medida profilática mais eficiente do que a análise das próprias crianças, e são menores as dificuldades para pô-la em prática.
Podemos mencionar, conquanto apenas como consideração incidental, um meio indireto de a educação das crianças poder ser ajudada pela análise, um modo que, com o tempo, pode adquirir maior influência. Os pais que tiverem em si a experiência da análise, e devem muito a ela, além de lhe deverem compreensão interna (insight) das falhas havidas na sua própria educação, tratarão seus filhos com melhor compreensão e lhes pouparão muitas coisas de que não foram poupados.
Paralelamente ao trabalho dos analistas no sentido de influenciar a educação, estão sendo feitas outras investigações quanto à origem e prevenção da delinqüência e do crime. Também aqui estou apenas abrindo a porta para os senhores e mostrando-lhes os compartimentos que se situam detrás dela, sem conduzi-los para dentro. Estou certo de que, se os senhores permanecerem leais ao seu interesse pela psicanálise, poderão aprender muita coisa nova e valiosa a respeito desses temas. Entretanto, não devo abandonar o assunto da educação sem me referir a um seu aspecto especial. Tem-se afirmado — e certamente com razão — que toda educação possui um objetivo tendencioso, que ela se esforça por fazer a criança alinhar-se conforme a ordem estabelecida da sociedade, sem considerar qual o valor ou qual o fundamento dessa ordem como tal. Se [pergunta-se] uma pessoa está convencida dos defeitos das nossas atuais instituições sociais, a educação segundo uma linha psicanalítica também não pode justificadamente se colocar a serviço dessas instituições: a tal educação deve-se dar finalidades outras e mais elevadas, isentas das exigências reinantes na sociedade. Contudo, em minha opinião, esse argumento não cabe aqui. Tal pretensão está além da função legítima da análise. Da mesma forma, não compete ao médico, que é chamado para tratar um caso de pneumonia, preocupar-se com coisas tais como, por exemplo, se o paciente é um homem honesto, um suicida, ou um criminoso, se merece continuar vivo ou se se deveria querer mantê-lo com vida. Esse outro objetivo que se deseja dar à educação também será um objetivo tendencioso, e não é da competência do analista decidir entre as partes. Estou abandonando totalmente o fato de que a psicanálise deveria recusar qualquer influência na educação, no caso de esta se propor objetivos incompatíveis com a ordem social estabelecida. A educação psicanalítica estará assumindo uma responsabilidade para a qual não foi convidada, se ela tencionar transformar seus discípulos em rebeldes. Ela terá desempenhado seu papel se os tornar tão sadios e eficientes quanto é possível. A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários suficientes para garantir que todo aquele que nela se educou jamais tomará em sua vida posterior o partido da reação e da repressão. Penso até mesmo que as crianças revolucionárias não são desejáveis, sob nenhum ponto de vista.
Proponho-me, ainda, senhoras e senhores, dizer-lhes algumas palavras a respeito da psicanálise como forma de terapia. Discuti o lado teórico da questão, há quinze anos atrás, e não consigo formulá-lo de nenhuma outra maneira, hoje; agora, tenho de contar-lhes a nossa experiência durante esse intervalo. Como sabem, a psicanálise originou-se como método de tratamento; ela o desenvolveu muito, mas não abandonou seu chão de origem e ainda está vinculada ao seu contato com os pacientes para aumentar sua profundidade e se desenvolver mais. As informações acumuladas, de que derivamos nossas teorias, não poderiam ser obtidas de outra maneira. As falhas que nós, na qualidade de terapeutas, encontramos, constantemente nos propõem novas tarefas, e as exigências da vida real estão efetivamente em guarda contra um exagero da especulação, da qual não podemos, afinal, prescindir em nosso trabalho. Já faz muito tempo, debati os meios usados pela psicanálise para auxiliar os pacientes, quando os auxilia, e o método pelo qual o faz; hoje perguntarei sobre quanto ela realiza.
Talvez os senhores saibam que nunca fui um terapeuta entusiasta; não há o perigo de eu fazer mau uso desta conferência excedendo-me em elogios. De preferência, diria antes pouco do que muito. Durante o período em que eu era o único analista, as pessoas ostensivamente amáveis para com minhas idéias costumavam dizer-me: ‘Tudo isto é muito bonito e inteligente, mas me mostre um caso que o senhor tenha curado pela análise.’ Esta era uma das muitas fórmulas que no decorrer do tempo se sucederam na função de afastar do caminho a incômoda inovação. Hoje em dia, está tão em desuso como tantas outras: o analista também tem em seus escaninhos uma pilha de cartas de pacientes agradecidos que foram curados. A analogia não pára aí. A psicanálise é realmente um método terapêutico como os demais. Tem seus triunfos e suas derrotas, suas dificuldades, suas limitações, suas indicações. Em certa época, fazia-se contra a análise a queixa de que não podia ser tomada a sério, na qualidade de tratamento, de vez que não se atrevia a publicar estatísticas de seus êxitos. Partindo disto, o Instituto Psicanalítico de Berlim, que foi fundado por Max Eitingon, publicou um documento sobre seus resultados durante os seus primeiros dez anos. Os seus sucessos terapêuticos não constituem motivo, nem de orgulho, nem de vergonha. Estatísticas dessa espécie não são, porém, em geral, instrutivas. O material com que lidam é tão heterogêneo, que apenas números muito elevados mostrariam algo. É mais correto examinar as próprias experiências do indivíduo. E aqui gostaria de acrescentar que não penso poderem as nossas curas competir com as que se verificam em Lourdes. São muito mais numerosas as pessoas que crêem nos milagres da Santa Virgem, do que aquelas que acreditam na existência do inconsciente. Se nos voltarmos para os competidores deste mundo, devemos comparar o tratamento psicanalítico com outros tipos de psicoterapia. Mal se pode mencionar, aqui, os atuais métodos orgânicos de tratamento dos estados neuróticos. A análise, enquanto método psicoterapêutico, não se situa em oposição a outros métodos usados nesse ramo especializado da medicina; não lhes diminui o valor e nem os exclui. Não há nenhuma incoerência teórica se um médico, que gosta de se dizer psicoterapeuta, usa a análise em seus pacientes paralelamente a algum outro método de tratamento, segundo as peculiaridades do caso e as circunstâncias externas favoráveis ou desfavoráveis. É realmente a técnica que obriga à especialização na prática da medicina. Assim, a cirurgia e a ortopedia, do mesmo modo, foram obrigadas a separar-se. A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar. Via de regra, a psicanálise possui um médico inteiramente, ou não o possui em absoluto. Aqueles psicoterapeutas que empregam a psicanálise, entre outros métodos, ocasionalmente pelo que sei, não se situam em chão analítico firme; não aceitaram toda a análise, tornaram-na aguada — mudaram-lhe a essência, quem sabe; não podem ser incluídos entre os analistas. Penso que isto é lamentável. Na prática médica, a cooperação entre um analista e um psicoterapeuta que se limita a outras técnicas, serviria a propósitos muito úteis.
Comparada com outros procedimentos psicoterapêuticos, a psicanálise é, fora de dúvida, o mais eficiente. Também, é justo e correto que seja assim, de vez que também é o mais laborioso e demorado; não seria usado em casos leves. Nos casos apropriados, é possível, através dela, suprimir os distúrbios e promover modificações que, em épocas pré-analíticas, não se ousaria esperar obter. Tem, contudo, os seus limites bem definidos. A ambição terapêutica de alguns de meus adeptos fez os maiores esforços no sentido de superar tais obstáculos, de modo que todo tipo de doença neurótica pudesse ser curável por meio da psicanálise. Tentaram comprimir o trabalho analítico num tempo mais curto, intensificar a transferência de modo a poder vencer qualquer resistência, juntar-lhe outras formas de influência a fim de forçar uma cura. Esses esforços são certamente dignos de elogios, mas, segundo penso, são vãos. Ademais, trazem consigo o risco de a pessoa ser arrastada para fora da análise e atraída para uma série de experiências sem limites. A expectativa de que todo fenômeno neurótico possa ser curado, pode ser, conforme suspeito, derivada da crença do leigo de que as neuroses são algo muito desnecessário, que não têm qualquer razão de existir. E, no entanto, elas são, com efeito, doenças graves, fixadas na constituição, que raramente se limitam apenas a alguns ataques, mas persistem geralmente por longos períodos, ou por toda a vida. Nossa experiência analítica, segundo a qual elas podem ser extensamente influenciadas se as causas precipitantes históricas e os fatores acidentais acessórios da doença puderem ser abordados, levou-nos a negligenciar o fator constitucional em nosso procedimento terapêutico, e em todo caso não podemos fazer nada quanto a esse fator; mas, em teoria, devemos tê-lo sempre em mente. A radical inacessibilidade das psicoses ao tratamento analítico, tendo em vista a estreita relação delas com as neuroses, deveria limitar nossas pretensões com referência às últimas. A eficácia terapêutica da psicanálise permanece tolhida por numerosos fatores de peso e dificilmente abordáveis. Quanto ao caso das crianças, em que se pode contar com os maiores êxitos, as dificuldades são externas, influenciadas pelo relacionamento com os pais, embora tais dificuldades, afinal, necessariamente façam parte da condição da criança. Quanto aos adultos, as dificuldades surgem, em primeiro lugar, de dois fatores: o montante da rigidez psíquica presente e a forma da doença, com tudo o que isto abrange em termos de fatores determinantes mais profundos.
O primeiro desses fatores amiúde é negligenciado sem razão. Por maiores que sejam a elasticidade da vida mental e a possibilidade de reviver antigas situações, nem tudo pode ser trazido à luz novamente. Determinadas modificações parecem ser definitivas e correspondem a cicatrizes que se formaram quando um processo completou seu curso. Em outras ocasiões, tem-se a impressão de um enrijecimento geral na vida psíquica; os processos mentais, aos quais se poderia muito bem indicar outros caminhos, parecem incapazes de abandonar os antigos rumos. Mas, talvez isto seja equivalente àquilo que acabei de mencionar, só que visto de forma diferente. Muitas vezes, parece que se verifica que aquilo que está faltando ao tratamento é apenas a necessária força motriz, e que essa falta impede efetuar-se a modificação. Determinada relação de dependência ou um componente instintual especial podem ser demasiado poderosos em comparação com as forças opostas que somos capazes de mobilizar. É quase sempre isto o que ocorre com as psicoses. Nós as conhecemos o suficiente para sabermos em que ponto devem ser aplicadas as alavancas; estas, contudo, não seriam capazes de mover o peso. Realmente, é aqui o lugar onde está a esperança no futuro: na possibilidade de que nosso conhecimento da atuação dos hormônios (os senhores sabem o que eles são) nos possa fornecer os meios de combater com êxito os fatores quantitativos das doenças: mas estamos longe disto, atualmente. Apercebo-me de que, em todos esses assuntos, a incerteza é um estímulo constante para aperfeiçoar a análise e especialmente a transferência. Os iniciantes em análise, principalmente, ficam em dúvida, em caso de insucesso, se devem atribuí-lo a peculiaridades do caso ou à sua própria inabilidade de manejar o procedimento terapêutico. Mas, conforme já disse anteriormente, não creio que se possa conseguir muito com intentos nessa direção.
A segunda limitação aos êxitos da análise é causada pela forma da doença. Já sabem os senhores que o campo de aplicação da terapia analítica se situa nas neuroses de transferência — fobias, histeria, neurose obsessiva — e, além disso, anormalidades de caráter que se desenvolveram em lugar dessas doenças. Tudo o que difere destas, as condições narcísicas e psicóticas, é inevitável em grau maior ou menor. Seria inteiramente legítimo acautelar-nos dos insucessos, excluindo cuidadosamente esses casos. Tal precaução levaria a uma grande melhora nas estatísticas da análise. Todavia, aqui há uma armadilha. Nossos diagnósticos são feitos após os eventos. Assemelham-se à prova do rei escocês para identificar feiticeiras, que li em Victor Hugo. Esse rei declarava que possuía um método infalível de reconhecer uma feiticeira. Mandava cozer lentamente as mulheres num caldeirão de água fervendo, e então provava o caldo. Depois disso era capaz de dizer: ‘Esta era feiticeira’ ou ‘Não, esta não era’. Conosco se passa o mesmo, exceto que nós somos os que sofremos. Não podemos julgar o paciente que vem para tratamento (ou, igualmente, o candidato que vem para formação), senão depois de havê-lo estudado analiticamente por algumas semanas ou meses. De fato, estamos comprando nabos em saco. O paciente traz consigo aspectos doentios indefinidos e gerais que não comportam um diagnóstico conclusivo. Depois desse período de prova, pode acontecer que o caso se revele inviável. Com isto, mandamo-lo embora, se for um candidato, ou prolongamos a tentativa um pouco mais, se for um paciente, na expectativa de ainda podermos ver as coisas sob uma luz mais favorável. O paciente vinga-se acrescentando-se à nossa lista de fracassos, e vinga-se o candidato rejeitado, se for um paranóide, escrevendo livros sobre psicanálise. Como vêem, nossas precauções foram inúteis.
Receio que essas discussões detalhadas estejam exaurindo o interesse dos senhores. Contudo me sentiria ainda mais pesaroso se os senhores dessem para pensar que minha intenção é diminuir o conceito que os senhores têm da psicanálise como terapia. Talvez eu realmente haja feito um começo desajeitado. Pois eu quis fazer o contrário; excusar as limitações terapêuticas da análise mostrando a inevitabilidade delas. Com o mesmo propósito em vista, passo a outro ponto: a acusação, feita contra o tratamento analítico, de que ele leva um tempo exageradamente longo. Quanto a isto, deve-se dizer que as modificações psíquicas de fato só se fazem lentamente; se ocorrem rápida, subitamente, isto é mau sinal. É verdade que o tratamento de uma neurose muito grave pode, com facilidade, estender-se por vários anos; mas pensem, no caso de haver êxito, quanto tempo a doença teria durado. Uma década, provavelmente, por ano de tratamento, ou seja, a doença (como vemos tantas vezes, em casos não tratados) absolutamente não teria findado. Em alguns casos, justifica-se que retomemos uma análise, muitos anos depois. A vida desenvolveu novas reações patológicas a novas causas precipitantes; mas, nesse ínterim, nosso paciente tinha estado bem. A primeira análise realmente não tinha trazido à luz todas as suas disposições patológicas, e era natural que a análise houvesse parado, uma vez obtido o êxito. Existem também pessoas gravemente prejudicadas que são mantidas sob supervisão analítica por toda a vida e retornam à análise de tempos em tempos. Essas pessoas, não fosse dessa maneira, seriam, porém, totalmente incapazes de viver, e devemo-nos contentar com o fato de poderem manter-se sobrevivendo às suas próprias custas, por meio desse tratamento parcelado e recorrente. A análise dos distúrbios de caráter também exige longos períodos de tratamento; mas, muitas vezes, obtém êxito; conhecem os senhores alguma outra terapia com a qual se poderia empreender semelhante tarefa? A ambição terapêutica pode sentir-se insatisfeita com esses resultados: mas, tendo como exemplos a tuberculose e o lupo, aprendemos que o sucesso só pode ser obtido quando o tratamento se adapta às características da doença
Disse-lhes que a psicanálise começou como um método de tratamento; mas não quis recomendá-lo ao interesse dos senhores como método de tratamento e sim por causa das verdades que ela contém, por causa das informações que nos dá a respeito daquilo que mais interessa aos seres humanos — sua própria natureza — e por causa das conexões que ela desvenda entre as mais diversas atividades. Como método de tratamento, é um método entre muitos, embora seja, para dizer a verdade, primus inter pares. Se não tivesse valor terapêutico não teria sido descoberto, como o foi, em relação a pessoas doentes, e não teria continuado desenvolvendo-se por mais de trinta anos.
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